4. Deus e O Problema do Mal: A Soberania de Deus
Nessa série de posts, discuti sobre um dos temas mais complexos no meio teísta: Deus e o problema do mal. No entanto, parece-me que essa complexidade ganhou mais peso nas discussões ligadas à filosofia e às religiões não-cristãs do que na tradição cristã cuja fé está balizada na Palavra de Deus. Quando vamos para as escrituras, observamos que a existência do mal não contraria logicamente aquilo que o cristianismo ensina sobre Deus. Esse assunto não é um tema que gerou tantos impactos negativos para os escritores bíblicos. O que levou os nossos pais da fé a lidarem bem com o problema do mal foi a compreensão do tema a partir da premissa da soberania de Deus.
Uma primeira ideia trabalhada pelos teólogos cristãos para se compreender a razão pela qual Deus permitiu a existência do mal é a defesa de que Deus criou seres “livres” para adorá-lo. Nesse aspecto, o mal como ente metafísico estaria relacionado ao primeiro pecado. Esse pecado originou-se, como crê a tradição evangélica, na dimensão do reino dos céus. Assim, o mal foi permitido por Deus a partir de uma faculdade de escolha dos seres angelicais recebida de Deus que lhes fariam livres e aptos para o adorar. Nesse contexto, estaria a figura dos anjos caídos que, em dado momento na eternidade e por livre escolha, se rebelaram contra Deus.
E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia. Judas 1:6
A origem do mal, inicialmente, não se deu na dimensão do cosmo, mas a partir de uma rebelião que se originou na dimensão das regiões celestiais. As escrituras vão dizer que o diabo “foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele”(João 8:44). Se considerarmos o texto de Ezequiel 28 como uma passagem que fala a respeito de Lúcifer, veremos que aquele querubim ungido que habitava nos céus rebelou-se contra Deus porque nasceu no coração dele o orgulho e o desejo de ser igual a Deus.
Tu eras o querubim, ungido para cobrir, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas.
Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou iniquidade em ti. Ezequiel 28:14,15
A partir disso, todos os aspectos do mal moral e físico tiveram seu curso doravante a rebelião premeditada no âmbito espiritual. Tudo indica que, nesse momento, se revelou a figura da presença do mal no ambiente criado por Deus. A Bíblia dá a entender que houve um impacto substancial a partir dessa rebelião com reflexos nefastos nas categorias físicas e espirituais. Talvez essa rebelião tenha se dado após a criação do cosmo e do homem. Não se sabe ao certo quanto tempo o Adão viveu em estado de inocência diante de Deus. O que se pode inferir das escrituras é que Deus permitiu que os anjos caídos tivessem trânsito no cosmo, sobretudo, na própria Terra criada. Jesus revela que Satanás foi expulso dos céus e perdeu o posto de destaque para a mais nova criatura e obra prima de Deus: o homem:
E voltaram os setenta com alegria, dizendo: Senhor, pelo teu nome, até os demônios se nos sujeitam. E disse-lhes: Eu via Satanás, como raio, cair do céu. Lucas 10:17,18
Nesse sentido, apesar de Deus ter criado um mundo perfeito conforme a sua vontade, aprouve a Ele, soberanamente, permitir que o ser caído tivesse influência no poder de escolha do único homem que tinha de fato o “livre-arbítrio” – Adão. Não quero agora adentrar na questão teológica do tema, mas é pacífico nas escrituras que os únicos seres humanos que foram capazes de escolher entre o “bem” e o “mal” livremente foram os nossos primeiros pais. De fato, Adão optou por desobedecer a Deus, conforme relata o livro do Gênesis no Capítulo 3. Isso desencadeou consequências terríveis em toda obra da criação, como a dor, o sofrimento e os demais males existentes na Terra. Segundo o apóstolo Paulo, toda a criação geme por causa das consequências do pecado:
Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou (Romanos 8:19,20)
Pensar que tudo isso surgiu sem o consentimento da vontade de Deus é desconsiderar uma doutrina cara na Bíblia que é a soberania de Deus. De fato, não temos condições de saber a razão por que Deus permitiu a presença do mal e do pecado. Uma coisa a Bíblia vai dizer: tudo que Deus faz é maravilhoso, pois “O caminho de Deus é perfeito”(Salmos 18:30). A Bíblia vai contradizer a proposta de Leibniz quando este afirmou que Deus criou “o melhor dos mundos possíveis”. Na realidade, a Bíblia afirma que Deus criou todas as coisas conforme a sua vontade. E tudo que ele fez exalta a sua perfeição. O livro de Apocalipse afirma que:
“Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder; porque tu criaste todas as coisas, e por tua vontade são e foram criadas” (Apocalipse 4:11)
Alguns cristãos que não tiveram a experiência da conversão sentem certa dificuldade em aceitar que Deus soberanamente determina todas as coisas. Acham que isso é sinal de que Deus é o autor do mal. De fato, a Bíblia é bem clara em dizer que Deus não é o autor do mal, conforme já demonstrado no primeiro post. A Bíblia afirma que é impossível Deus ser tentado, como também é impossível sair mentiras dos seus lábios (Tiago 1:13 e Hebreus 6:18). Porém, parece-me bem cristalino que Ele, por razões que ainda não sabemos, permitiu que o mal emergisse do meio de suas criaturas. Mas entre permitir e atribuir a Ele a causa do Mal existe uma diferença muito grande. Portanto, pela vontade permissiva de Deus o mal ainda se faz presente no nosso meio, mas há um propósito eterno para isso que nossa mente ainda não conseguiu aquilatar.
É bem verdade que todo o sofrimento um dia terá o fim. Na consumação dos séculos, todo o mal será extirpado do seio da criação de Deus. Os salvos serão glorificados por causa do sacrifício de Jesus. Isso faz parte do plano eterno de Deus. O texto do livro de Apocalipse prova que Jesus, o cordeiro de Deus, foi morto “antes da fundação do mundo”, de modo que já estava nos planos de Deus restaurar o homem caído juntamente com sua criação para viver eternamente com Ele. Então para compreender o problema do mal, é preciso ter um olhar holístico que abarque todo o conselho e propósito eterno de Deus. Nós como seres limitados julgamos uma parte ínfima da história da criação, mas não temos condições de julgar os eternos conselhos de Deus. Foi essa resposta que Deus deu a Jó, quando este questionou ao Senhor os motivos de seu sofrimento. Deus apenas fez uma pergunta: Onde estavas tu, Jó, quando formei os firmamentos da Terra e do Universo?
Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência. Quem lhe pôs as medidas, se é que o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre que estão fundadas as suas bases, ou quem assentou a sua pedra de esquina, Quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus jubilavam? Jó 38:4-7
Portanto, não cabe a nós discutirmos com Deus os motivos da permissão do mal no mundo. Conforme narram as escrituras, somente quando entrarmos no santuário de Deus é que iremos entender os propósitos eternos Dele. O Salmista Asafe teve uma experiência semelhante quando quase entrou em “parafusos” ao observar que o ímpio estava prosperando e recebendo as dádivas desse mundo, enquanto ele – que temia a Deus – recebia as dores e os sofrimentos desta vida. Ele começou a questionar a bondade de Deus, mas tudo na vida dele mudou quando ele entrou na presença de Deus, e viu o fim dos ímpios. Foi no Santuário, ou seja, na presença de Deus que as escamas dos seus olhos caíram:
Quando pensava em entender isto, foi para mim muito doloroso;
Até que entrei no santuário de Deus; então entendi eu o fim deles.
Certamente tu os puseste em lugares escorregadios; tu os lanças em destruição. Salmos 73:16-18
Em conclusão, o que se pode afirmar a partir das escrituras é que Deus é sim todo-poderoso e todo amoroso. E que o mal existe no mundo, mas este foi permitido por algum propósito eterno de Deus, e no fim Deus irá destruir o mal de forma a extirpá-lo para sempre do Mundo. Nas palavras do profeta Isaías, Deus vai criar novos céus e nova terra onde o mal não terá mais espaço: “Porque, eis que eu crio novos céus e nova terra; e não haverá mais lembrança das coisas passadas, nem mais se recordarão” (Isaías 65:17). O problema lógico do mal levantado por Epicuro, hoje, não é mais um grande calcanhar de Aquiles do cristianismo. Filósofos cristãos como Alvin Plantinga possuem excelentes trabalhos que buscam discutir o assunto dentro da cadeira da Filosofia. Caso alguém queira aprofundar no tema sugiro a leitura dos trabalhos desse brilhante autor.
Deus abençoe e até breve!
Sugestões de leituras:
Gordon H. Clark. Deus e o Mal Resolvido. Editado por Felipe Sabino de Araújo. Disponível em eBook Kindle;
Leibniz, G.W. Ensaios de Teodiceia. Estação Liberdade;
Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Editora Cultura Cristã;
Luiz Sayão. O Problema do Mal no Antigo Testamento: O Caso de Habacuque. São Paulo: Hagnos;
R. K. MacGregor Wright, A Soberania Banida, Editora Cultura Cristã;
William Lane Craig. Apologética para questões difíceis da vida. Editora Vida Nova.