Propriedade privada

Também a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha; pois vós sois estrangeiros e peregrinos comigo.

Levítico 25:23

O assunto de hoje é primordial para entendermos economia. Aliás, para se ter economia, a definição de propriedade privada tem que ser muito bem colocada em prática. A frase parece soar muito forte ou estranha, mas é literalmente isso que acontece. É claro que você pode ter uma economia “planificada” (veremos essas definições em outro momento), mas isso está mais para uma “economia ditatorial” do que a definição de economia que vimos na coluna anterior. Aliás, vamos começar justamente daqui.

De acordo como definimos na coluna anterior, economia é a ciência que estuda a alocação de recursos escassos com o objetivo de produzir bens e serviços a partir da ação humana. Veja que para se ter ação humana sobre alocação de recursos pressupõe duas alternativas: recursos próprios ou recursos alheios. Em questão de recursos alheios, também temos duas opções: por força ou pela autorização do dono. Vamos descartar as imposições de outros e considerar apenas alocação de recursos escassos que tem um dono legítimo.

Aqui é importante destacar (ainda não definimos) que propriedade privada é diferente de recursos escassos. Recursos escassos podem ser propriedade de alguém. Outro ponto, que veremos melhor em outra oportunidade, é a ideia de meios de produção. Inicialmente, intercambiarei estes termos como sinônimos apenas para efeitos didáticos. Então, vamos dar uma olhada em alguns teóricos muito importantes sobre a definição de propriedade. Começando com o mestre Mises:


Propriedade significa o poder de desfrutar de todos os serviços que um bem possa proporcionar.

Ação Humana – Mises

Em um outro trecho, Mises coloca a definição mais explicita:


Ao tratar de propriedade privada, a cataláxia se refere ao controle que o proprietário tem sobre sua propriedade e não a conceitos, termos e definições legais. Propriedade privada significa que os proprietários determinam o emprego dos fatores de produção, enquanto que propriedade pública significa que o seu emprego é determinado pelo governo.

Ação Humana – Mises

Um parêntese. Cataláxia e seus derivados (cataláctica) significa, de forma simples, a forma como as pessoas fazem negócios (compra, venda e troca de produtos) livremente. É uma subárea da praxeologia, que é a ciência que estuda a ação humana em termos de estrutura lógica, ou seja, como o ser humano age baseando-se em alguma lógica interna.

Então podemos definir que propriedade é o poder de usar tudo o que um bem possa oferecer. E a propriedade privada seria uma característica a mais, a característica de ser particular, algo próprio. Vamos ver um outro importantíssimo teórico da economia, Hans-Hermann Hoppe, antes de fechar a definição de propriedade privada:


Toda propriedade privada é, por definição, propriedade exclusiva. Aquele que possui uma propriedade tem o direito de excluir todos os outros do seu uso e do seu gozo, tendo a liberdade de escolher com quem – caso realmente o queira – ele está disposto a compartilhar a utilização dela. Normalmente, o proprietário de um estabelecimento privado incluirá a sua família e excluirá todos os outros. A propriedade se torna uma propriedade familiar – a qual o tem como o seu chefe –, e toda pessoa não pertencente à família será excluída do uso da propriedade familiar, exceto quando for um convidado ou um funcionário pago ou contratado.

Democracia: o deus que falhou. A economia e a política da monarquia, da democracia e da ordem natural Hans-Hermann Hoppe

Voltando a Mises para complementar:


A propriedade privada dos meios de produção é a instituição fundamental da economia de mercado. É a instituição cuja existência caracteriza a economia de mercado. Onde não há propriedade privada dos meios de produção não há economia de mercado.

Ação Humana – Mises

Veja que a definição mais clara de propriedade privada é a propriedade onde há um ser particular ou privado que tem o direito de usá-la livremente. Isso significa que o determinado bem é de uso privado e particular de uma pessoa e esta pessoa é livre para utilizar este bem. Implicitamente a esse conceito está o princípio da não agressão, que é uma das bases da liberdade e do libertarianismo (veremos em outra oportunidade): todo mundo é livre para fazer qualquer coisa desde que não agrida a propriedade de outra pessoa. Os exemplos de propriedade são milhares: terreno, carros, roupa, caneta etc.

Um dado importante é não confundir propriedade privada elementar, essa que foi definida acima, com propriedade que pessoas, governos ou estados derivam para outras pessoas. Em outras palavras, propriedade privada é algo intrínseco ao ser humano. Sobre isso, considero um outro autor com poder de síntese muito melhor: John Locke. Destaco as suas palavras:


A razão natural explica-nos que, a partir do seu nascimento, os homens possuem direito à sua preservação, e, consequentemente, à comida e à bebida, e a todas as outras coisas que a natureza lhes oferece para a sua subsistência.

Segundo tratado sobre o governo – John Locke

Veja que Locke não invoca estado, leis, autorização de alguma outra pessoa ou qualquer outra derivação para dizer que a propriedade privada mais fundamental é a própria vida do homem. Em um outro trecho, do mesmo livro, Locke coloca:


Apesar da terra e de todas as criaturas inferiores serem propriedade comum de toda a humanidade, cada homem é proprietário da sua própria pessoa, sobre a qual mais ninguém detém direito algum. O trabalho do seu corpo e o labor das suas mãos são seus, há que o reconhecer. Ora, para que um homem possa colher alguma coisa, retirando-a daquele estado em que a natureza a havia colocado, necessita de exercer sobre ela o seu esforço, de lhe adicionar algo de seu, nomeadamente o seu trabalho. E é por esta via que a transforma em propriedade sua. Algo é removido do estado comum em que a natureza o havia colocado, na medida em que lhe é anexado o trabalho de alguém e, destarte, é excluído do direito comum de todos os outros homens. Uma vez que o trabalho é, inquestionavelmente, propriedade do trabalhador que o produz, nenhum outro homem poderá possuir qualquer direito sobre ele, nem sobre aquilo em que incidir, pelo menos enquanto se deixar o suficiente e de igual qualidade para os demais em comum.

Segundo tratado sobre o governo – John Locke

Apenas lembrando que Locke é do séc. XVII; ele viveu entre 1632 e 1704. Em resumo, para ele, a propriedade é um direito natural e é inseparável do ser humano. Fechando Locke:


Apesar de termos afirmado no capítulo II que todos os homens são iguais por natureza, certamente que se compreenderá que não nos reportávamos a todos os tipos de igualdade. A idade ou a virtude podem legitimamente dar a um homem precedência sobre os demais. Aqueles que apresentarem uma excelência de qualidades ou um mérito superior merecem um lugar acima do nível médio da sociedade. Pelas condições peculiares em que nasceram, pelas alianças que celebraram ou pelos benefícios que receberam, alguns homens podem ser levados a prestar um especial tributo àqueles a quem a natureza, a gratidão, ou qualquer outra consideração, os tornou devedores. E, todavia, tudo isto é compatível com a condição de (igualdade em que todos os homens se encontram relativamente à jurisdição ou ao domínio mútuo. Era a esta igualdade que me referi como sendo específica da matéria que agora nos ocupa, e que se reporta ao igual direito que cada homem tem à sua liberdade natural, em virtude da qual ninguém se encontra sujeito à vontade ou à autoridade de qualquer outro homem.

Segundo tratado sobre o governo – John Locke

Voltando a Mises sobre a definição legal de propriedade:


Essa noção cataláctica de direito de propriedade não deve ser confundida com a sua definição legal, conforme consta das leis dos vários países. A ideia dos legisladores e dos tribunais foi a de definir o conceito legal de propriedade de tal maneira que o proprietário recebesse plena proteção do aparato governamental de coerção e compulsão, e de maneira a impedir que os seus direitos fossem usurpados por outras pessoas. Na medida em que esse objetivo tenha sido adequadamente atingido, o conceito legal de direito de propriedade corresponde ao conceito cataláctico. Entretanto, hoje em dia, existe uma tendência a abolir a instituição da propriedade privada através de uma mudança nas leis que definem o âmbito das ações que um proprietário tem o direito de empreender com as coisas que são de sua propriedade. Embora mantendo a expressão propriedade privada, essas reformas visam a substituir a propriedade privada pela propriedade pública. Essa tendência é o traço característico dos planos das várias escolas de socialismo cristão e de socialismo nacionalista.

Ação Humana – Mises

Amarrando a ideia de propriedade privada dada naturalmente com a impossibilidade de ser autorizada ou dada por qualquer outro ser humano ou entidade humana, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, atual Constituição, coloca umas coisas estranhas. Por exemplo, o art. 5°, que é cláusula pétrea (não pode ter emenda tendente a abolir), coloca que a lei garante a propriedade:


XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

CF/1988

Em outras palavras, a propriedade no Brasil é relativizada a mercê da lei / CF/1988, e não é algo natural ao ser humano. Outra coisa estranha que a CF/1988 coloca está no art. 170°:


A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV – livre concorrência;

CF/1988

A estranheza que levanto deixo o próprio mestre Mises responder. Em um outro ponto do maravilhoso livro Ação humana ele coloca:


O significado da propriedade privada na sociedade de mercado é radicalmente diferente do significado que lhe é atribuído num sistema familiar autárquico. Onde cada família é economicamente autossuficiente, os meios de produção de sua propriedade servem exclusivamente ao proprietário; só ele recolhe as vantagens decorrentes de seu emprego. Na sociedade de mercado, os proprietários de capital e de terras só podem usufruir de sua propriedade empregando-a para satisfazer as necessidades de outras pessoas. Precisam servir o consumidor para tirar alguma vantagem daquilo que lhes pertence. O próprio fato de serem possuidores de meios de produção força-os a se submeterem aos desejos do público. A propriedade só é um ativo para aqueles que sabem como emprega-la, da melhor maneira possível, em benefício dos consumidores. É uma função social.

Ação Humana – Mises

Traduzindo: a propriedade privada é natural e intrínseca ao ser humano, seu significado no mercado é no sentido de ser base para o funcionamento da economia. Mais do que isso: além de ser primordial para o funcionamento da economia e do mercado, a propriedade exerce a função social naturalmente. O que tem na nossa CF/1988, por exemplo, não é algo natural: é dado, controlado e exercido pelo governo / estado.

Nesse sentido da propriedade ser fundamental ao funcionamento da economia e do mercado, Mises mesmo explicita isso:


A propriedade privada dos meios de produção é a instituição fundamental da economia de mercado. É a instituição cuja existência caracteriza a economia de mercado. Onde não há propriedade privada dos meios de produção não há economia de mercado.

Ação Humana – Mises

Em um outro livro que trata sobre liberalismo (assunto que veremos em outra oportunidade), Mises dá uma definição e história sobre propriedade:


Por conseguinte, o programa do liberalismo, se pudermos condensá-lo em uma única palavra, se resumiria no termo “propriedade”, isto é, a propriedade privada dos meios de produção (pois, no que se refere às mercadorias prontas para o consumo, a propriedade privada é um fato, e isto não é questionado pelos socialistas e comunistas). Liberalismo segundo a tradição clássica – Mises


Em outro trecho:


A história da propriedade privada dos meios de produção coincide com a história do desenvolvimento da humanidade, desde sua condição animalesca até as alturas da moderna civilização.

Liberalismo segundo a tradição clássica – Mises

E também menciona os adversários da propriedade privada. Spoiler: são os mesmos de hoje em dia (Brasil e mundo):


Os adversários da propriedade privada têm-se dedicado, a duras penas, a demonstrar que, nos primitivos estágios da sociedade humana, a instituição da propriedade privada ainda não existia de forma completa, de vez que parte da terra sob cultivo se sujeitava à periódica redistribuição. Com base nesta observação, que demonstra que a propriedade privada é apenas uma “categoria histórica”, tentam tirar a conclusão de que esta poderia ser, mais uma vez, dispensada com toda a segurança. A falácia é tão flagrante que dispensa maiores comentários. A conclusão de que tenha havido cooperação social na mais remota antiguidade, mesmo na ausência de um sistema completamente organizado de propriedade privada, não pode fornecer a menor prova de que alguém pudesse haver-se sem a propriedade privada, assim como, também, nos estágios mais altos da civilização. Se a história puder provar algo em relação a esta questão, será apenas que, em lugar algum e em tempo algum, houve um povo que tenha suplantado, sem o recurso da propriedade privada, a condição da mais opressiva penúria ou o nível selvagem que pouco se distingue da existência animal.

[…]

Os primeiros adversários do sistema da propriedade privada dos meios de produção não atacavam a instituição da propriedade privada como tal, mas apenas a desigualdade da distribuição da renda. Recomendavam a abolição da desigualdade da renda e da riqueza, por meio de um sistema de redistribuição periódica da quantidade total das mercadorias ou, pelo menos, da terra, que era, à época, praticamente o único fator de produção levado em conta. Nos países tecnologicamente atrasados, onde prevaleça a produção agrícola primitiva, a ideia de uma distribuição igual da propriedade ainda prevalece. Acostumou-se a chamá-la de socialismo agrário, embora a denominação não seja, de modo algum, adequada, uma vez que o sistema nada tem a ver com o socialismo. A revolução bolchevique na Rússia, que se iniciou como socialista, não estabeleceu o socialismo na agricultura, isto é, na propriedade comum da terra, mas, ao invés, estabeleceu o socialismo agrário. Em grandes áreas do restante da Europa Oriental, a divisão de grandes propriedades da terra entre pequenos fazendeiros, feita sob o nome de reforma agrária, é o ideal abraçado por influentes partidos políticos. Liberalismo segundo a tradição clássica – Mises

Liberalismo segundo a tradição clássica – Mises

Dando nome aos bois, de forma até mais explicita, no mesmo livro Mises coloca:


A ideia do sindicalismo representa uma tentativa de adaptar o ideal de distribuição igual da propriedade às condições da moderna indústria de grande escala. O sindicalismo procura dar a propriedade dos meios de produção, não aos indivíduos nem às sociedades, mas aos trabalhadores empregados em cada indústria ou setor de produção.

Liberalismo segundo a tradição clássica – Mises

Acho que está bastante claro que propriedade é o cerne da liberdade. Aliás, vou invocar outro importantíssimo teórico para fechar esta questão: Murray Rothbard.


A chave da teoria de liberdade é o estabelecimento dos direitos de propriedade privada, pois o campo justificado de ação livre de cada indivíduo só pode ser demonstrado se seus direitos de propriedade forem analisados e estabelecidos.


Para finalizar, é importante conectar a ideia de propriedade com a teologia cristã. Trabalhando de uma forma estritamente não religiosa, se é que isso é possível, a liberdade de um ser humano vem da propriedade, ou seja, um ser humano é livre para fazer negócios, mercado etc se, e somente se (linguagem da matemática que significa “não há outra possiblidade”) ele tiver propriedade (do seu corpo, coisas etc). Agora, em uma perspectiva cristã, nós sabemos que não somos livres no sentido amplo da expressão (fonte de desejos etc); estamos submetidos ao pecado desde o nosso nascimento.

Por outro lado, quem é dono de tudo, incluindo recursos escassos e nossos corpos, é o próprio Deus, Criador do céu e da Terra. Inclusive, em todo o livro Segundo tratado sobre o governo, Locke invoca a fonte da propriedade privada como sendo algo dado por Deus:


Pelo contrário, empenhar-me-ei em demonstrar como os homens podem tornar-se proprietários de várias parcelas daquilo que Deus concedeu a toda a humanidade, em comum, sem que, para o efeito, seja necessária a celebração de qualquer pacto entre os co-proprietários.

[…]

Deus concedeu a terra em comum a todos os homens, mas também lhes deu a razão, para se guiarem por ela e a usarem da forma mais vantajosa e mais conveniente para as suas vidas. A terra, e tudo o que ela contém, foi dada aos homens para que dela retirassem o sustento e o conforto.

Segundo tratado sobre o governo – John Locke

Lembrando que Locke está no séc. XVI e a ideia de terras é a mesma que temos hoje de fonte de sustento, trabalho, propriedade privada. Nada melhor para fecharmos esse texto com a ordem do próprio Criador aos israelistas:

Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra é minha.

Êxodo 19:5

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Sugestão de leitura

Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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