Buraco negro e a criação de monstros cósmicos
Naquele dia o SENHOR castigará com a sua dura espada, grande e forte, o leviatã, serpente veloz, e o leviatã, a serpente tortuosa, e matará o dragão, que está no mar.
Is 27:1
No épico de criação Enuma Elish, um dos diversos textos dos povos do Antigo Oriente Próximo (AOP), relata a criação do mundo após a morte da deusa Tiamat pelo deus Marduque. Tiamat é uma das deusas, dentre outras funções, do caos e após a sua morte e esquartejamento, cada parte deu origem a uma área do mundo: seu tórax foi aberto e deu origem ao céu e ao firmamento (região entre a superfície da Terra e o céu; mesmo termo e conceito que é usado em Gn 1) e seu sangue, misturado com a terra, deu origem a um boneco de barro e, pelo desejo dos deuses, originou o homem. O detalhe: Tiamat era uma espécie de serpente dos mares.
No início do texto bíblico em Gênesis há 2 palavras em hebraico que foram traduzidas como sem forma e vazia. Essas palavras tem um significado, dentro do contexto cultural, como caos, desordem primordial. Diversas culturas do AOP mostram as origens como deuses emergindo de aguas primordiais caóticas (egípcios) ou, como é o caso acima dos babilônicos, surgimento de tudo a partir de disputas entre Tiamat e Marduque. Na Bíblia há citação de “animais” ou monstros que, entre os povos do AOP, eram os deuses ou forças do caos, por exemplo: leviatã (semelhante uma serpete dos mares, como em Is 27:1, Sl 104:26 e Jó 41:1) e beemote (análogo a um grande hipopótamo). E o destaque está que até esses monstros são criação de Deus: Contemplas agora o beemote, que eu fiz contigo, que come a erva como o boi (Jó 40:15). Ou, na “melhor” das hipóteses, é Ele quem os domina: Fizeste em pedaços as cabeças do leviatã, e o deste por mantimento aos habitantes do deserto (Sl 74:14).
Mas hoje não é meu objetivo falar desses deuses, forças do caos ou monstros primordiais que, em conjunto com outros “animais”, preenchem os poemas épicos mitológicos. Quero ampliar um pouquinho mais o monstro cósmico que mencionei na coluna anterior: o buraco negro. Alguns conceitos que já estão mencionados na coluna anterior e que precisam estar em vossa mente: massa solar (unidade que equivale, aproximando, 2×1030 kg), anos-luz (unidade de distância: arredondando para 9,5 trilhões de km) e velocidade de escape (velocidade necessária para sair da força gravitacional de uma estrela ou planeta). Um outro detalhe necessário é que a velocidade da luz, a velocidade mais rápida que pode existir no universo, é de 300 mil km/s, ou seja, absolutamente nada pode andar mais rápido que a luz.
Buraco negro (BN) é um objeto muito compacto e denso cuja velocidade de escape é maior do que a velocidade da luz, ou seja, ele não emite radiação. Alguns defendem que ele é uma região no espaço-tempo, mas aí a briga é mais teórica e não é objetivo aqui entrar nessa questão. A história dos BNs remota ao século XVIII com John Michell e Marquês de Laplace (este último muito conhecido na matemática e na física): BN seria uma estrela negra ou invisível onde a luz não poderia escapar de sua gravidade. E tudo isso vindo da mecânica newtoniana. No século XX com a Relatividade Geral (RG) de Einstein, que é uma reformulação ou ampliação da gravitação de Newton, o conceito de BN permanece, mas agora com uma explicação da fonte mais clara: a curvatura do espaço-tempo em um objeto que foi implodido gravitacionalmente (por exemplo, uma estrela) é tão grande que a trajetória da luz é voltada para dentro. E esse nome, buraco negro, foi dado pelo grande físico do século XX, John Wheeler, que faleceu em 2008.
Apenas em 1965 foi descoberto o primeiro BN: Cygnus X-1, um buraco negro de massa estelar (quase 15 massas solares).
O LIGO (Laser Interferometer Gravitational-wave Observatory) tem detectado ondas gravitacionais advindas de BNs desde 2015. Como trabalhei na coluna anterior há 3 classificações básicas para os BNs: estelar (algumas dezenas de massas solares), de massa intermediária (algumas centenas de massas solares) e os supermassivos (milhares, milhões e bilhões de massas solares). Mas, qual é a constituição, composição e a cara de um BN, olhando-o face a face?
Infelizmente, não temos essa resposta. Aliás, felizmente, pois isso traz diversas questões e mais pesquisas. Mas, trabalhando com física teórica, modelos, soluções de equações e simulações computacionais podemos ter uma ideia de como ele é. Inclusive, até comparar com a foto de apenas um BN: o supermassivo da galáxia M87.
A primeira solução das equações da RG veio com um Schwarzschild em 1916. Isso quer dizer que, trabalhando com as equações de Einstein ele conseguiu descrever um objeto que a relação entre a sua massa e raio serial de tanto para ter uma gravidade tão forte que nem a luz seria capaz de sair. Ao longo das décadas seguintes apareceram várias soluções teóricas e várias classificações, muito técnicas, para os BNs (sem rotação, com rotação, com spin etc). Importante: até este momento não conseguimos dizer qual tipo de BN está relacionado com tal observação. Observe a figura abaixo:
O BN é sempre considerado como praticamente esférico devido a força gravitacional, que é sempre radial. Com isso, ele tem um raio (raio de Schwarzschild, que está relacionado com a massa) e o centro é uma singularidade: um “ponto” onde o espaço é zero e a densidade infinita. A borda “externa” é o horizonte de eventos, ou seja, até esse lado de fora é possível escapar; passado o horizonte de eventos, nem a luz sai. A questão da singularidade é “apenas” um problema matemático já que não faz sentido físico ter algo com espaço zero ou densidade infinita.
Uma forma de observar, de forma indireta, um BN é detectando as ondas gravitacionais. O LIGO, como citado acima, tem sido o observatório responsável atualmente por diversas descobertas, mas todas de BNs de massa estelar e de massa intermediária. Outra forma é verificando as fontes de radiações diversas vindas de galáxias. Neste caso específico, quando a galáxia tem um núcleo ativo (AGN: Active Galactic Nuclei ou núcleo ativo de galáxia) há um disco de acreção, que é uma área circular enorme (de dezenas ou centenas de anos-luz de diâmetro) de material que está constantemente caindo no BN e jatos relativísticos, compostos por partículas (elétrons, prótons etc), acompanhados por intensa radiação (raios gama, raios X etc). Um modelo teórico bem plausível é a figura abaixo:
E este modelo está até de acordo com as observações até agora. Por exemplo, a primeira foto do BN da galáxia M87, mostrada acima, tem o destaque do disco de acreção (parte amarelada) e uma circular escura que é a sombra do BN no disco de acreção. Outro bom exemplo é a galáxia NGC 4261 que foi vista pelo Telescópio Espacial Hubble e que, combinando várias imagens de observação, foi possível modelar o que há no centro dela:
Ao que tudo indica, todo BN ativo (que tem emissão de radiação) tem um disco de acreção cuja temperatura é da ordem de 100 milhões de graus Celsius e isso vale para BNs estelares (como Cygnus X-1 citado anteriormente) e supermassivos de núcleo ativo de galáxias (nem toda galáxia tem um BN supermassivo com disco de acreção, como parece ser o caso da nossa Via Láctea).
Apenas como curiosidade: o maior BN conhecido até o momento é o do quasar (um tipo de BN em uma galáxia; falarei futuramente) SMSS J2157-3602 (não é bem um nome, mas é um código que os astrônomos dão). Ele tem uma massa de 34 bilhões de massas solares e está localizado em uma posição quando o universo tinha uma idade de mais ou menos 1 bilhão de anos, ou seja, essa “imagem” que temos dele é de quando o universo tinha essa idade (hoje ele tem cerca de 13,82 bilhões de anos). Utilizado a equação de Schwarzschild (que pode ser vista até corretamente na Wikipédia) calculei que seu raio tem mais de 100 bilhões de km. Comparando com o sistema solar, a distância do Sol a Plutão é de quase 5 bilhões de km. Ou seja, só o raio desse buraco negro cabe todo o sistema solar (do Sol a Plutão) cerca de 20 vezes.
Resumindo, BNs são os grandes monstros do universo. Dado a escala de tamanho onde moramos, desde o sistema solar até os confins conhecidos do universo, os BNs são os maiores objetos que temos. Claro que não é comparado a um leviatã e a um beemote dentro de um contexto onde todo o mundo era muito pequeno comparativamente com a vida dos seres humanos na cosmogonia antiga do AOP. É claro que o universo, para eles, era muito grande e para nós, é “apenas” o sistema solar (talvez um pouquinho maior). Olhando de dentro para fora, as forças do caos eram muito poderosas no instante da criação. Mas indo para o texto bíblico, tanto na cosmogonia antiga quanto na visão de hoje, vemos que Deus é o criador de todas as coisas, incluindo as forças do caos, as estrelas, as galáxias e, claro, todos os buracos negros.
Na descrição que Deus faz a Jó observe a grandeza desse monstro do caos primordial:
Eis que a sua força está nos seus lombos, e o seu poder nos músculos do seu ventre.
Quando quer, move a sua cauda como cedro; os nervos das suas coxas estão entretecidos.
Os seus ossos são como tubos de bronze; a sua ossada é como barras de ferro.
Ele é obra-prima dos caminhos de Deus; o que o fez o proveu da sua espada.
Jó 40:16-19
Só isso?! Sim! Mas, ficou em dúvida, quer perguntar algo, deixar algum comentário ou sugerir algum tema, deixe abaixo! Ficarei feliz em te responder, seja nos comentários ou em algum artigo específico.
Sugestão de leitura
- Um interessante artigo da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2) sobre os 100 anos RG: https://www.cristaosnaciencia.org.br/a-teoria-do-big-bang-e-os-100-anos-da-relatividade-geral/;
- Um esquema um pouco mais detalhado sobre a anatomia de um buraco negro: https://www.eso.org/public/brazil/images/eso1907h/;
- Duas aulas completa de astrofísica sobre núcleos ativos de galáxias onde tem um buraco negro com disco de acreção: http://www.astro.iag.usp.br/~pcoelho/ensino/grad/aga0299/9_agn.pdf e http://www.astro.iag.usp.br/~laerte/aga295/13_agn_hp.pdf;
- Livro Astronomia e astrofísica, por S. O. Kepler e Maria de Fátima Saraiva. Este livro é disponibilizado no próprio site dos autores, que são professores da UFRGS. É um excelente material de consulta: http://astro.if.ufrgs.br/livro.pdf.
Até a próxima!