Dilúvio: a geografia da inundação
E as águas prevaleceram excessivamente sobre a terra; e todos os altos montes que havia debaixo de todo o céu, foram cobertos.
Gênesis 7:19
Uma das tradicionais questões que se colocam nas discussões sobre o dilúvio é se ele foi global (em toda a Terra) ou local (na região do AOP – Antigo Oriente Próximo). Alguns colocam a questão como um meio termo, ou seja, o dilúvio foi global no sentido de que as águas da destruição alcançaram todo ser humano: algo um pouco maior do que só local e menor do que global, geograficamente. Um exemplo claro dessa última questão está no livro A origem: quatro visões cristãs sobre criação, evolução e design inteligente. Na sessão sobre o Criacionismo (progressivo) da Terra antiga, Hugh Ross destaca:
Antes de adentrar nessa questão de geografia do dilúvio, é importante ressaltar um detalhe que deixei, talvez não tão explicito quanto queria, nas colunas sobre Dilúvio: boa literatura e Dilúvio: história ou ficção?. Há diversos relatos no mundo antigo sobre que utilizam a figura de linguagem hipérbole (exagero), e esses relatos são históricos. Por exemplo, a guerra entre os egípcios e os israelitas em Canaã, que está citada na estela de Merenptah é o relato de um acontecimento, mas está embebedado com hipérbole. No livro de Josué, dos capítulos 1 a 12, também traz um registro histórico das conquistas de Israel na terra de Canaã, mas com recheios de hipérbole.
Em resumo: diversas passagens bíblicas, ao descrever eventos históricos, têm muitos elementos literários, como hipérbole. Isso denota que há um evento histórico mesmo que seja exagerado (hiperbólico). E isso também está no bojo do texto bíblico na parte onde trata de mito ou da narrativa mito-poética. Em As origens: mitologia no texto bíblico? e As origens: características da mitologia bíblica tratei um pouco melhor dessa narrativa e nessas colunas coloco, em outras palavras, que a narrativa mítica é uma narrativa para dar sentido a realidade. E a fonte do texto mítico, que é bíblico e de inspiração divina, são histórias míticas (documentos disponíveis na época ou tradição oral) e acontecimentos históricos.
Muito cuidado com essa última expressão, acontecimentos históricos. Isso não quer dizer que o mundo foi criado em 6 dias ou que o texto bíblico relata que o mundo veio de um caos primordial. Isso tem, no caso do texto bíblico, conotação teológica, ou seja, o escritor do texto bíblico não está interessado e nem está descrevendo um relato histórico, mas ele pode estar se baseando em algum evento histórico passado e a sua base são documentos e tradição oral disponíveis à sua mão.
É mais do que óbvio que o que se tinha de tradição oral e documentos “históricos” sobre acontecimentos anteriores ao séc. XV a.C. (considerando Moisés o escritor original de Gn) estão no mesmo rio cultural “científico”, ou seja, as pessoas acreditavam que o mundo foi criado de tal e tal forma sem a preocupação científica que temos hoje. E é mais do que óbvio também que Deus não ensinou ciência a Moisés no momento para escrever sobre a criação: Ele usou-o dentro do seu conhecimento e fontes que se tinha na época.
E o objetivo de Deus, ao inspirar Sua Palavra em Moisés não era de relatar acontecimentos históricos, mas de apresentar teologia. De novo, o escritor pode ter tomando a mão documentos e relatos históricos para escrever o dilúvio, por exemplo, mas o objetivo final não era relatar o acontecimento histórico daquilo que chamamos dilúvio. Trazendo as palavras do Walton, para melhor fixar esse ponto:
Em um outro trecho, Walton é mais enfático:
Veja que, embora o texto de Gn 1 a 11, para mim, seja uma narrativa mítica e escrito em um formato poético, há algum “fundo de verdade” nos relatos, e isso inclui o dilúvio. Então, a partir de agora, vamos ver o que o texto bíblico diz sobre a geografia do dilúvio. Repito, vamos ver o que o texto bíblico diz sobre a extensão do dilúvio tendo em mente as três possibilidades: dilúvio local, dilúvio global e dilúvio atingindo pessoas em todo o mundo.
O motivo de ter colocado que vamos ver o que está no texto bíblico é muito simples. Dando um gigantesco spoiler de toda essa série O dilúvio: não há qualquer evidência física, geofísica, geológica, atmosférica ou climática de que houve dilúvio como descrito literalmente no texto bíblico. A primeira pergunta, legítima, que você pode me fazer é pedir uma “prova” e a resposta é simples: não há evidência material ou “prova” de que houve qualquer coisa que lembre, de longe, um evento diluviano como descrito no texto bíblico. Por exemplo, na coluna Dilúvio: a física da arca de Noé descrevi que, embora seja fisicamente possível a arca de Noé ser navegável, não há, nem de longe, qualquer indicativo de que esse conhecimento (científico, naval, tecnológico ou técnico) existia na época que é datado o dilúvio (aproximadamente séc. XXIV a.C.). As embarcações grandes, compatíveis com o tamanho da arca de Noé, só foram construídas, forçando a história, a partir do séc. XVII, ou seja, em contas baixas, 3.400 anos depois do que se data o dilúvio.
Olhando para o texto puro do dilúvio observamos que a palavra traduzida como terra, no original hebraico, é ´erets. Abaixo tem uma imagem, com destaque para essa expressão, na Torá:
Walton coloca que os defensores da ideia de um dilúvio local traduzem essa expressão, ´erets, como região ao invés de terra. Então, ao invés de termos terra, o correto seria região nos seguintes versos em Gn: 6:5 a 7, 17; 7:4, 6, 10, 12, 17-24; 8:1, 3, 7, 9, 11, 14 e 17 (compare, você mesmo, com a Bíblia na versão que tiver).
Por outro lado, como argumenta Walton no mesmo livro O mundo perdido do dilúvio:
Traduzindo: a ideia, advinda do texto bíblico, não é de um dilúvio local justamente porque a humanidade está espalhada pela Terra e as águas alcançaram todo mundo. A ideia, a partir do texto bíblico, de um dilúvio global, ou seja, águas do dilúvio cobrindo desde o polo norte ao polo sul, desde o leste da Austrália ao oeste do Alaska, também não é o caso por motivo óbvio: o escritor do texto não tinha a menor noção da extensão da Terra, fora que, para ele, o mundo era plano.
Sobrou, como alternativa, o meio termo: de acordo com o texto bíblico, as águas do dilúvio cobriram toda a terra até o limite de onde havia ser humano. E ainda tem um outro componente, mítico, para essa alternativa:
Em um outro trecho do livro, Walton fecha a conta:
Em resumo, o que o escritor do texto bíblico está colocando na narrativa do dilúvio é que as águas que fizeram com que “Tudo o que tinha fôlego de espírito de vida em suas narinas, tudo o que havia em terra seca, morreu.” (Gênesis 7:22) alcançaram cada ser humano em cada localidade onde se havia um homem. Por exemplo, se não havia homem no polo sul, local desconhecido pelo escritor, mas que ele sabia que em lugares desconhecidos não havia gente, então o dilúvio não ocorreu no polo sul.
Ainda tratarei, com um pouco mais de detalhes, mas quero adiantar, novamente, o spoiler “científico” do dilúvio: não há possibilidade física e nem evidência, indireta que seja, que houve qualquer fenômeno como descrito no texto bíblico. A questão histórica, é “fácil” de identifica: não há nenhum registro arqueológico, geofísico, geológico, climático ou atmosférico que embase o dilúvio como descrito no texto bíblico (com arca, águas cobrindo montes etc).
A questão física, detalharei em outro texto. Mas, adiantando: não é possível ter qualquer tipo de evento com modificações climáticas envolvendo chuvas e águas advindas da superfície e subsuperfície terrestres a ponto de se ter algo como o texto bíblico descreve. Além dessa impossibilidade física hídrica, ainda temos a impossibilidade geológica ou geofísica: não há, fisicamente falando, qualquer possibilidade de movimentação de placas tectônicas, deslocamento ou aberturas de porções de terra para a “subida” de águas.
É claro que há muitas tentativas de explicação física, geológica e geofísica para o dilúvio. E essas tentativas, as poucas que conheço, são simplesmente esdrúxulas do ponto de vista da estrutura do próprio planeta Terra. Um exemplo: antes do dilúvio, os continentes eram juntos e se separaram no dilúvio (pangeia). Isso é um absurdo em qualquer tentativa física de explicação. Por exemplo, a separação dos continentes, da Pangeia, começa por volta de 250 milhões de anos e o movimento é por outras dezenas de milhões de anos até a configuração atual. A escala é de centenas milhões de anos contra uns 4.300 anos. Gondwana, o supercontinente do hemisfério sul que se separou da Pangeia, tem o seu movimento e a sua quebra em África, América do Sul e Oceania por volta de 165 milhões de anos. De novo, uma escala de centenas de milhões de anos contra 4.000.
A próxima pergunta, natural e legítima, que você pode estar fazendo é: se não teve dilúvio como o texto bíblico descreve, então o que é essa narrativa mito-poética que Moisés escreve em Gn? Quais são as suas fontes para escrever um evento desse tipo com muita figura de linguagem, como hipérbole? Isso é o que veremos nas colunas futuras. Espero que você não naufrague nessa série.
Quinze côvados acima prevaleceram as águas; e os montes foram cobertos.
Gênesis 7:20
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Sugestão de leitura
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- A origem: quatro visões cristãs sobre criação, evolução e design inteligente, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Um texto simples para leitura sobre placas tectônicas e pangeia: https://www.blogs.unicamp.br/colecionadores/2021/09/24/a-separacao-dos-continentes-em-uma-visao-historica/;
- Um dos livros que utilizarei, praticamente como base, é o O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III, John H. Walton e com contribuição de Stephen O. Moshier, editora Thomas Nelson Brasil. Também utilizei o mesmo livro, mas na edição em inglês: The lost world of the flood: mythology, theology, and the deluge debate por Tremper Longman III & John Walton with a contribuition by Stephen Moshier, editora IVP Academic.