Dilúvio: boa literatura

E expirou toda a carne que se movia sobre a terra, tanto de ave como de gado e de feras, e de todo o réptil que se arrasta sobre a terra, e todo o homem.

Gênesis 7:21

Na coluna de hoje continuarei a navegar nas águas turbulentas do dilúvio do mal entendimento sobre o texto bíblico. No texto anterior https://horadeberear.com.br/2022/12/27/diluvio-historia-ou-ficcao/ nos ancoramos na questão de que o dilúvio, como descrito nas Escrituras, pode ter se referido a um evento (ou eventos) catastróficos que ocorreram em algum momento do passado do escritor. Por outro lado, a forma de escrever ou relatar este acontecimento é diferente da forma que relatamos e descrevemos eventos hoje em dia. Em outras palavras: se aconteceu algum evento catastrófico no passado, a forma de descrever este evento é como está colocada no texto bíblico, ou seja, em formato poético e mítico. E mais do que isso: a estrutura literária é carregada de tudo o que se pode colocar em um texto: gêneros literários e figuras de linguagem.

E é aqui que entra a beleza do texto bíblico. Walton, no livro que já estou utilizando nessa série (O mundo perdido do dilúvio) coloca uma frase belíssima que vai de encontro a tudo o que já estudamos na Bíblia e na nossa teologia. Nas suas palavras:

Em outras palavras, o autor de Gênesis quer que o leitor entenda que ele está escrevendo sobre o passado real.

Entretanto, também notamos sinais claros de que a escrita, enquanto referencial, não está particularmente interessada em relatar o acontecimento de modo a nos permitir reconstruí-lo, porém se concentra em sua interpretação. Mais precisamente, o autor retrata o acontecimento de modo a promover sua mensagem teológica.

Walton, O mundo perdido do dilúvio

Então, mesmo que o texto do dilúvio, nosso objeto de leitura, seja um evento real, nós não conseguimos descrevê-lo como queremos porque a nossa forma de entender e descrever acontecimentos é diferente da escrita do autor original. E mais: Moisés não está descrevendo um evento como a gente quer: ele está, por inspiração divina, escrevendo a Palavra de Deus. E a Palavra de Deus, em primeira instância, não é um texto descritivo, é um texto de revelação.

Mas essa é a parte teológica e a gente conhece muito bem. E a gente entender o texto de uma forma ou de outra, em termos históricos, não muda o sentido da nossa teologia. Ou seja, se a gente compreender que não houve arca de Noé, canguru sendo entregue na Austrália, pinguins na Patagônia etc, não há perda teológica.

E é justamente isso que acontece. Como trataremos em outro texto, o dilúvio da forma descrita no texto bíblico não aconteceu: não tem arca, canguru sendo entregue na Austrália, urso polar sendo entregue no Polo Norte etc. Mas tem alguma coisa que aconteceu. E a reconstrução dessa alguma coisa passa pelo texto que temos em mãos. É suficiente? Não, mas quebra um galho. Lembrando que o texto não é primário para descrição de fenômenos ou acontecimentos históricos.

Vamos olhar para o texto. O texto está, em seu original, escrito em um idioma que está bem “alterado” desde o seu manuscrito original de Moisés. Só isso já se perde, para o nosso objetivo de descrever eventos, detalhes. Considerando que não haja perdas, o texto está escrito em formato mito-poético e para entendermos como ele é pensado, precisamos entrar na cabeça de Moisés e ver como ele escreveu esse texto. Como temos só o texto bíblico, vamos ver outros textos ao redor de Moisés, alguns mais antigos, outros mais novos. Mas todos estão no mesmo rio cultural do qual Moisés está inserido.

Rio cultural, em outras palavras, é o contexto, e a forma de se pensar. Por exemplo, se eu for escrever um texto sobre cosmologia, esse meu texto sobre cosmologia será muito semelhante a qualquer outro texto de cosmologia escrito por qualquer outro físico que esteja no mesmo rio cultural que eu. Esse rio cultural, hoje em dia e dentro da cosmologia, é maior, geograficamente falando, que só o local onde moro. Então, um japonês escreverá um texto sobre cosmologia muito semelhante ao meu: estamos no mesmo rio cultural.

Moisés também está no mesmo rio cultural que outros escritores. Por exemplo, o escritor do épico de Gilgamesh tem a forma de pensar semelhante à de Moisés, apesar deste ser mais antigo, cerca de 400 anos, que Moisés. Então, na hora que o escritor de Gilgamesh redige seu texto (mítico e poético), ele está raciocinando no mesmo estilo de Moisés. Os 2 usarão figuras de linguagem, usarão poesia, usarão a narrativa mítica, mas terão bases, cosmovisões e inspirações diferentes.

No quesito figuras de linguagem, uma que é bastante utilizada na narrativa do dilúvio bíblico é a hipérbole. Hipérbole é uma figura de linguagem de exagero. Por exemplo: “eu já falei pra você não fazer isso 1 milhão de vezes!”. Aqui é um claríssimo caso de hipérbole: eu jamais falaria algo para você 1milhão de vezes. Mas a ideia aqui é expressar que já te falei tal coisa por muitas vezes, mais do que você precisaria entender.

Tem diversas hipérboles na Bíblia. Por exemplo, uma outra que Walton destaca é que no livro de Josué, capítulos 1 a 12, retrata, se lermos de forma literal, que toda a terra de Canaã foi conquista. Veja o que diz o verso abaixo:

Assim Josué tomou toda esta terra, conforme a tudo o que o Senhor tinha dito a Moisés; e Josué a deu em herança aos filhos de Israel, conforme as suas divisões, segundo as suas tribos; e a terra descansou da guerra.

josué 11:23

Agora, olha este verso:

Era, porém, Josué já velho, entrado em dias; e disse-lhe o SENHOR: Já estás velho, entrado em dias; e ainda muitíssima terra ficou para possuir.

Josué 13:1

Não tem ginástica exegética que coloque, de forma lógica, que o verso 11:23 não significa toda a terra que Deus prometeu; o verso é explícito. Mas 2 páginas de Bíblia depois temos uma descrição geográfica de que não houve conquista de toda a terra que Deus tinha prometido. Obviamente, não há contradição se lermos o texto bíblico corretamente, com as figuras de linguagem corretas e o gênero correto. O que o texto, esse específico de Josué, está fazendo é o uso de uma figura de linguagem hipérbole: “conquistamos tudo o que Deus tinha prometido” (hipérbole), “faltaram terras tais e tais para conquistar” é o “complemento” para a hipérbole ou o sentido “literal”.

De forma geral, há outras hipérboles na Bíblia. Geralmente o texto bíblico para descrever algo que tem muito tempo (muitos dias, muitos meses, muitos anos), coloca algo como “40”. Por exemplo: choveram 40 dias e 40 noites, Israel ficou 40 anos em tal lugar, Jesus jejuou por 40 dias etc. Aqui, a expressão “40 dias” e “40 anos” expressa “muitos dias” e “muitos anos”. Não dá para afirmar, categoricamente, que foram 40 dias de 24 h ou 40 anos de 12 meses; pode ser um pouco mais ou um pouco menos que 40 dias / anos. É claro que encontrar figuras de linguagem no texto bíblico não é um exercício simplista, ainda mais porque utilizamos uma Bíblia em português.

Por último, não é só o texto bíblico que utiliza figuras de linguagem como hipérbole: o AOP (Antigo Oriente Próximo utiliza e muito. Exemplos de hipérbole que estão no mesmo rio cultural de Moisés e da escrita do relato do dilúvio são as conquistas egípcias. Lawson Younger tem um livro cheio de exemplos, não só de hipérbole, mas de outras figuras de linguagem e narrativas (o título está na Sugestão de leitura). Uma expressão, conta Lawson Younger, é a “Never had the like been done …” (em tradução livre: Nunca foi feito antes…). Em suas palavras (tradução livre):

Esta é uma frase muito comum que pode ser uma reminiscência do conceito de ‘revolução permanente’ que Hornung viu no pensamento egípcio. A frase é usada pela primeira vez por Thutmose I na descrição de sua caça de elefantes em Niy. É posteriormente usado por Thutmose III e por Amenhotep III em Konosso. Seu equivalente também é visto na Estela de Israel Stela de Merenptah: ‘Nunca isso foi feito para nós desde o tempo de Re’.

Lawson Youger, p. 191

Um outro detalhe que Younger está colocando é a famosa Estela de Israel. Até o momento, é o registro da palavra Israel mais antigo que temos na arqueologia e que está colocada em uma estela (um bloco de pedra com escrita hieróglifa):


Estela de Merenptah Fonte: Six temples at Thebes, 1896, por W. M Flinders Petrie, p. 70

A figura acima é da inscrição da Estela de Merenptah. Há um destaque, que fiz em vermelho, e nele diz Israel está devastado, sua semente não existe mais (de acordo com John A. Wilson no texto Egyptian hymns and prayes do livro editado por James Pritchard; descrito integralmente nas Sugestões de leitura). Há outras citações em textos antigos (hieróglifos) que colocam a ideia de coisas “absolutas”, povos que não existem mais etc., Mas são todas citações de hipérboles:

Assim, fica claro apenas a partir desses poucos exemplos que a hipérbole desempenhou um papel importante na construção da conquista egípcia contas.

Lawson Youger, p. 192

Veja, se em uma estela egípcia, uns 200 anos depois do êxodo de Israel do Egito, diz com todas as letras (ou desenhos “hieroglifados”) que Israel não existe nem como semente (figura de linguagem hiperbólica) e com diversos outros casos de uso de recurso linguístico, é natural que a hipérbole fosse muito utilizada. Detalhe: ao que tudo indica, a história de Josué é da mesma época que a estela de Merneptah; o registro histórico (a escrita) do livro de Josué é, provavelmente, cerca de 300 anos depois. Ou seja, a figura de linguagem hipérbole sempre foi muito utilizada (até no Novo Testamento).

Apesar desta coluna estar bem curtinha, acredito que tenha muito conteúdo para você refletir. Se possível, encontre os livros que cito na Sugestão de leitura, leia-os (estão, infelizmente, em inglês. Apesar de antigos, é de fácil leitura). Ou, no mínimo, leia o livro do Walton O mundo perdido do dilúvio e “acredite” no que ele escreve. Tenho buscado as fontes originais que ele tem citado e consigo ir até o “original em hieróglifo”; como não sei ser “figurinhas” egípcias, confio nos pesquisadores que transliteram e traduzem para o inglês.

Mas você nem precisa ir até este ponto; deixe isso para mim, para seu pastor ou para seu professor de Escola Bíblica. Espero que você não naufrague nessa série.

Vemos, assim, que a Bíblia não é, em hipótese alguma, contrária ou reticente ao uso de hipérbole para comunicar sua importante mensagem teológica. Além do mais, a articulação mais recente da doutrina da inerrância reconhece plenamente esse uso, afirmando que ele, de nenhum modo, compromete a veracidade da Escritura. Existem acontecimentos históricos por trás das declarações hiperbólicas, mas é difícil, senão impossível, reconstruí-los em detalhe, visto que autores bíblicos não se interessam muito pelo acontecimento em si, mas em seu significado para o relacionamento de Deus com seu povo.

Walton em O mundo perdido do dilúvio

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

  • O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Acient conquest accounts: a study in Ancient Near Eastern and biblical history writing por K. Lawson Younger, Jr. Journal for the Study of the Old Testament – Supplement Series 98, 1990;
  • Egyptian hymns and prayes porJohn A. Wilson no livro Ancient Near Eastern texts: relating to the Old Testament, 3ª ed com suplemento, editado por James Pritchard, Princeton University Press, 1969 (p. 378);
  • Livro Six temples at Thebes por W. M Flinders Petrie, 1896, é um livro muito antigo. Ele tem, descrito em hieróglifos, diversos documentos de diversas dinastias faraônicas;
  • Um dos livros que utilizarei, praticamente como base, é o O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III, John H. Walton e com contribuição de Stephen O. Moshier, editora Thomas Nelson Brasil. Também utilizei o mesmo livro, mas na edição em inglês: The lost world of the flood: mythology, theology, and the deluge debate por Tremper Longman III & John Walton with a contribuition by Stephen Moshier, editora IVP Academic.
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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