Os outros dilúvios: Eridu e reis sumérios

E as águas prevaleceram excessivamente sobre a terra; e todos os altos montes que havia debaixo de todo o céu, foram cobertos..

Gênesis 7:19

A coluna de hoje tentará apresentar algumas outras narrativas diluvianas. O motivo de colocar “tentar” é porque são diversos textos espalhados pelo mundo, inclusive há relatos, em tradição oral, no Brasil. Outro motivo é que o que se tem disponível é o que foi encontrado pela arqueologia. Ou seja, até poderia tentar mencionar e descrever todos textos escritos (que por si já é uma tarefa humanamente impossível, ainda mais para um simples físico como eu), mas amanhã poderá ser divulgado outro estudo, outro texto ou outra interpretação e isso mudar uma ou muitas coisas nas histórias diluvianas.

Antes de entrar em 2 narrativas que escolhi para apresentar é necessário mencionar alguns detalhes. O primeiro é que a presença de textos diluvianos espalhados pelo mundo não comprova a existência de um único dilúvio à la arca de Noé. Os motivos para esta afirmação são diversos: a datação da escrita diverge em muito tempo, tanto entre os documentos quanto a partir deles e o texto bíblico.

Por exemplo, considerando que o texto de Eridu, que vou mencionar mais para frente, como datado do séc. XVII a.C., ele é uns 200 anos mais antigo que o texto bíblico. Por outro lado, você pode, corretamente, imaginar que tanto do texto de Eridu quanto o dilúvio bíblico chegaram aos seus escritores (ou remetentes) por tradição oral. Mas aí entra outra dificuldade: a transmissão oral de um evento (considerando que seja possível descrevê-lo), na questão do dilúvio, deixa o evento completamente diferente: tanto o texto bíblico quanto Eridu, transmitem a ideia de uma catástrofe com água, mas não há nenhum indicativo, escrito (que é o que temos), de que se trata do mesmo evento em termos temporais.

Outro exemplo, que mencionarei aqui, é o “livro” Lista dos reis sumérios. Ele é datado entre os sécs. XXIX e XXVI a.C., ou seja, na melhor das hipóteses, 1.100 anos antes de Moisés. Compara com a nossa história, Brasil. Em um pouco mais de 500 anos, com toda a nossa tecnologia, com todo o nosso desenvolvimento científico (a ciência moderna já nasce nessa mesma época), em termos linguísticos, mudou demais. Imagina o que deve ter mudado de mentalidade (a gente mudou muito nos últimos 500 anos), de escrita (é quase impossível um brasileiro, hoje, ler a carta do descobrimento do Brasil, a carta de Vaz de Caminha) e de transmissão de ideias nos mil anos entre a Lista dos reis sumérios e Moisés.

Outro detalhe é que os dilúvios narrados pelo mundo (Índia, América do Sul, Oriente Médio quase todo, várias partes da África, com exceção do Egito) têm a mesma explicação acima: são eventos descritos em períodos diversos, sem conexão geográfica com o que se alega ser a narrativa do dilúvio, em todos tem deuses, heróis salvos por meio de construções de barcos e, espacialmente, muito distantes para se ter uma transmissão oral de histórias.

Um último ponto é a questão da escrita. Como conhecemos do colégio, até agora, a primeira escrita que surgiu foi a cuneiforme. Até o momento, é um tipo de escrita relativamente nova, com datação aproximada do séc. XXXIII a.C. (3.200 a.C.). Os hieróglifos egípcios, até onde conheço, são mais recentes que isso, datado como um pouco antes do séc. XIII a.C. (1.200 a.C. é a pedra de Merneptá). Após a criação ou desenvolvimento da escrita, o próximo passo é o desenvolvimento de linguagens, figuras de linguagem e gêneros literários. Os primeiros gêneros literários que temos, além da função de registrar matemática / contabilidade, são os mito-poéticos. E eles são tão diversos, em termos de surgimento pelo mundo, quanto as histórias diluvianas.

Agora que já temos os prolegômenos ou a introdução para se entender os textos diluvianos, quero apresentar 2. Começando com O Gênesis de Eridu.

O GÊNESIS DE ERIDU

O Gênesis de Eridu, em tradução livre, é um fragmento que está traduzido no livro The context of scripture: canonical compositions from the biblical world, vol. 1. Este livro traz um compilado de documentos do AOP (Antigo Oriente Próximo). Estes documentos são inscrições em cuneiforme, ou seja, são “pedaços” de pedra e tabuinhas de argila com inscrições em cuneiforme, a primeira escrita conhecida. É claro que nem todos os documentos estão completos. Este, por exemplo, está fragmentado, algumas partes estão perdidas. Thorkild Jacobsen, que comenta sobre esse documento, explicita (tradução livre):

O fragmento aqui traduzido foi escrito por volta de 1600 a.C. Constitui o terço inferior de uma coluna de seis tabuleta, cuja parte superior, contendo cerca de 36 linhas por coluna, está perdida. O conteúdo das seções perdidas pode ser restaurado até certo ponto de outras versões da mesma tradição, a maioria das quais são de data posterior. Na época do Império Assírio, a tradição, de forma um tanto abreviada, havia sido incluída a conhecida Crônica Babilônica, encabeçando-o.

A história, que tem uma estrutura muito parecida com a das histórias bíblicas do Gênesis, trata da criação dos homens e animais, das cidades antediluvianas e seus governantes e, finalmente, do Dilúvio, com paralelos na ordem da criação, os antediluvianos patriarcas e a história do Dilúvio na Bíblia. Pode concebivelmente ter servido como modelo ou inspiração para o relato bíblico.

Hallo e Younger, The context of scripture, pág 513

Veja que esse trecho é, arredondando as contas, 150 anos antes de Moisés. Talvez, como é a hipótese do Jacobsen, Moisés tenha utilizado este e/ou outros documentos conhecidos na época para escrever o dilúvio bíblico. Mas aqui entra um cuidado que já trabalhei em outras colunas, aqui e aqui: nem Moisés e nem nenhum outro escritor / compilador bíblico copiou de outros documentos para compor a Bíblia. Aliás, podemos até ter trechos copiados, já que não temos os autógrafos (originais), apenas cópias de cópias de cópias etc. O texto bíblico é Palavra de Deus inspirada e inerrante, mas textos podem ter sido usados como fontes históricas, bibliográficas ou até literárias para a escrita da Bíblia sem nenhum problema. O próprio Deus, obviamente, é o guia para este tipo de trabalho manual e humano.

Jacobsen traz, apesar de perdido muito conteúdo, vários trechos sobre o dilúvio que é relatado em O Gênesis de Eridu. Um dos trechos está abaixo com tradução livre e reorganizado para melhor entendimento:

E enquanto Ziusudra estava parado ao lado dele, ele continuou ouvindo: aproxime-se da parede à minha esquerda e ouçam! Deixe-me falar uma palavra para você na parede e que você possa entender o que digo, que você tenha ouvido meu conselho! Pela nossa mão uma inundação varrerá as cidades de cestos de meio alqueire, e os país; a decisão de que a humanidade será destruída está tomada; um veredicto, um comando da assembleia não pode ser revogado, uma ordem de An e Enlil não é conhecida jamais ter sido revogada sua realeza.

Hallo e Younger, The context of scripture, pág 515

O texto parece estar truncado por alguns fatores. O primeiro é a ausência de algumas partes, ou seja, há alguns “pedaços” de tabuinhas que estão perdidas e, para fazer sentido, é “completado” o texto de acordo com o contexto. Outro fator é que o texto está em cuneiforme, primeira escrita da humanidade, em formato poético (ou equivalente a um poema). Veja, com seus próprios olhos, um trecho do livro de Gilgamesh, um outro texto que contém dilúvio:

Agora, explicando um pouco sobre o texto acima. Nele há uma descrição de que o rei Ziusudra, rei de Shuruppak, recebe uma mensagem de que virá um dilúvio enviado pelos deuses Na e Enlil. Enki será o construtor do “grande barco”. Em um outro trecho do mesmo livro, O Gênesis de Eridu:

Todos os ventos maus, todos os ventos tempestuosos reunidos em um e com eles, então, o Dilúvio varreu (as cidades de) os cestos de meio alqueire por sete dias e sete noites. Depois que o dilúvio varreu o país, depois que o vento maligno jogou o grande barco nas grandes águas, o sol apareceu espalhando sua luz sobre o céu e a terra. The context of scripture, por William Hallo e K. Lawson Younger

Só para fechar este livro, o final do dilúvio:

Ziusudra então perfurou uma abertura no grande barco e o galante Utu enviou sua luz para o interior do grande barco. Ziusudra, sendo o rei, prostrou-se ante a Utu beijando o chão. O rei estava abatendo bois e preciosas ovelhas.

Hallo e Younger, The context of scripture, pág 515

É fascinante essa história sobre o dilúvio em uma outra cultura, em um outro idioma! Walton destaca que esses elementos diluvianos, centrais na narrativa, “são repetidos nas versões posteriores tanto babilônica quanto bíblica”.

LISTA DOS REIS SUMÉRIOS

Este documento é antigo, datado por volta do séc. XXI/XXII a.C., ou seja, pelo menos uns 600 anos antes de Moisés. Este texto é muito peculiar porque fala de reis que reinaram por milhares de anos. Veja alguns versos:

Alalgar reinou 36.000 anos. 2 reis reinaram seus 64.800 anos.

En-men-gal-Anna reinou 28.000 anos; o divino Dumu-zi, um pastor, reinou 36.000 anos.

Jacobsen, Sumerian King list, pág. 71/73

Há diversas outras citações de nome de pessoas, algumas características e o tempo que reinou. O que é facilmente notado é que depois do dilúvio o tempo de reinado caiu drasticamente: a escala era da ordem de mil a milhares de anos, e caiu para centenas de anos. Um verso característico desse ponto de inflexão:

O Dilúvio varreu tudo. Depois que o chapéu do Dilúvio passou por lá, quando a realeza foi baixada do céu, a realeza estava em Kish. Em Kish Ga..ur tornou-se rei e reinou 1.200 anos;

Jacobsen, Sumerian King list, pág. 71/73

O texto não relata como foi esse evento porque o seu foco não é o dilúvio e sim, a listagem dos reis sumérios. Só que esse evento foi tão profundo que mereceu destaque e há um novo referencial para a linhagem dos reis. Engraçado é que tendo o dilúvio não houve cessação da atividade de linhagem real. Veja um trecho onde Walton destaca melhor:

O dilúvio também recebe menção na Lista dos reis sumérios, texto que descreve o reinado como um dom dos céus à primeira cidade, Eridu, e mostra como, a partir de então, o sistema de governo é transmitido de uma cidade para outra. A informação de nosso interesse é que a Lista dos reis sumérios divide a história do reinado em dois períodos: pré-diluviano e pós-diluviano. Por isso, o dilúvio é simplesmente mencionado no texto, não apresentado como história: “Há cinco cidades cujos reis governaram sobre elas por 241 mil anos. [Então] o dilúvio varreu [a terra]. Depois de o dilúvio ter varrido [a terra]…”.

Walton, O mundo perdido do dilúvio

Acho que está muito claro, só por esses dois “simples” documentos, que a mentalidade narrativa do dilúvio está inserida nos povos do AOP. E isso é fora do texto bíblico e com pelo menos 500 anos de escrita antes de Moisés. Também é necessário destacar, novamente, que se Moisés usou ou não estes ou outros textos como fontes para a escrita do dilúvio bíblico não diminui a inspiração divina na Palavra. Apenas complementa o valor literário que ela já possui.

P.S.: A partir desse texto, colocarei apenas as referências dos livros que utilizar (Autor, nome do livro, página) e na sugestão de leitura, a descrição completa da obra.

Porque eis que eu trago um dilúvio de águas sobre a terra, para desfazer toda a carne em que há espírito de vida debaixo dos céus; tudo o que há na terra expirará.

Gênesis 6:17

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

  • O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência.
  • JACOBSEN, Thorkild. The sumerian king list. Chicago: The University of Chicago Press, 1939.
  • HALLO, William W. e YOUNGER Jr, K. Lawson. The context of Scripture: canonical compositions from the Biblical World. Vol 1. Leiden: Koninklijke Brill NV, 2003.
  • LONGMAN III, Tremper; WALTON, John e MOSHIER, Stephen. O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019.
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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