As Origens: rio cultural

Tudo isto disse Jesus, por parábolas à multidão, e nada lhes falava sem parábolas;

Mateus 13:34

A coluna de hoje continuará o assunto da série As Origens. Mais especificamente, entraremos em detalhes de literatura ao redor do povo hebreu. Ou seja, não será exatamente uma exposição de características literárias de Gênesis, como começamos na coluna que abriu essa série. A ideia será falar sobre literatura e algumas especificidades de documentos antigos que estão no mesmo rio cultural da época que Moisés escreveu (ou pelo menos começou) o Pentateuco. Vou utilizar, como estará claro e altamente recomendado nas sugestões de leitura, as obras de John Walton (professor de Antigo Testamento na Universidade Wheaton College) e outros colaboradores, como Tremper Longman III e N. T. Wright.

Antes, uma definição sobre a expressão rio cultural: é um conjunto de culturas que estão convivendo temporariamente em uma região e com contato constante ou esporádico, havendo maior ou menor grau de influência. Um exemplo: estou no Brasil, séc. XXI, com idioma português, cultura ocidental, religião cristã, com certa liberdade (econômica, social e política). Perto do Brasil há os EUA, com algumas semelhanças culturais, econômicas, sociais e política. Do outro lado do mesmo planeta e no mesmo século, temos a Rússia: cultura diferente, mas com muitos pontos semelhantes. Também, temos a Coréia do Norte, vivendo no mesmo planeta e século, com cultura muito diferente, sistema político, econômico e social completamente contrário ao que se vê em Israel. Observe que esses poucos exemplos estão no mesmo rio cultural, mesmo com alguns pontos contra a maré.

Um outro exemplo mais palpável: vou escrever um livro de cosmologia. Esse livro estará em idioma português, com matemática que é conhecida por todas as pessoas em qualquer país, sem importar a cultura, sociedade, política ou tipo de economia. Imagine uma pessoa no séc. XXX (daqui a 9 séculos) tentando entender o que escrevi sobre cosmologia no ano de 2021. Uma forma dessa pessoa entender é ler o livro diretamente: tomar as equações e verificar as figuras de linguagem que utilizo. Outra forma é analisar os livros de cosmologia de outros países, por exemplo as fontes que uso, na mesma época (um pouco antes também ajuda). Isso significa que, o que escrevo sobre cosmologia, de forma literária, não será diferente, na essência, do que é escrito em 1950 no Japão. Em outras palavras, eu e meu livro estamos imersos em um rio cultural que, qualquer pessoa no futuro, estudando esse livro, a época que vivo e as obras ao meu redor, entenderá, perfeitamente, a cosmologia que escrevi. Generalizando: a obra de um escritor está intimamente ligada ao seu pensamento, ao seu rio cultural e ao seu entendimento de ver como as coisas são.

Em um primeiro momento poderá soar muito estranho essa expressão, mas analise-a com calma: se todas as pessoas que lessem a Bíblia (em especial, o livro de Gênesis, que é o nosso objeto de reflexão) com a ideia de que esse livro tem um contexto cultural, social, político, econômico e linguístico, 95% (acho que até mais) dos problemas com relação a origens da Terra, do universo, do homem e queda estariam resolvidos. Os outros 5% seriam problemas para resolvermos na pesquisa: estudar, trabalhar, procurar soluções (algumas talvez impossíveis de se encontrarem); ou seja, só problemas braçais, de ordem manual, no sentido de gasto energético mental. Ainda sendo até muito otimista: os “conflitos” entre fé e ciência que achamos que temos (nunca houve e não há conflito entre ciência e fé cristã) nem seriam levantados; no máximo em contexto contrafactual (situações hipotéticas, como “e se Jesus não tivesse ressuscitado, o que teria acontecido ao cristianismo?”).

E como é o rio cultural de Moisés no momento da escrita de Gênesis? Vamos pensar um pouco na situação desse profeta. Ele e junto com diversas outras pessoas estão saindo da terra do Egito depois de séculos de escravidão e opressão em direção a uma região, Canaã, ainda a ser conquistada. Só que esse líder do povo de Deus foi, como nos relata Estevão em At 7:22, 23, criado em todo o conhecimento egípcio até a idade de 40 anos (ou seja, 1 geração inteira de instrução). Como sabemos pelas histórias em Gn, Egito era uma grande potência militar, econômica e científica (claro que não com a nossa definição atual). Estou colocando tudo isso em meados do séc. XIV a.C.

Vamos dar uma olhada no que é o Egito nessa época. Uma sociedade que vivia com dependência econômica e religiosa completa do rio Nilo. Sua história remonta de 3.000 a.C. (muito tempo antes de Gn), escrita e ciências bem avançadas. Na religião há um panteão de deuses, com antropomorfismo dominante (divindades com características humanas, tanto físicas quanto psicológicas). O faraó, rei e governante, era a conexão entre o mundo divino e o terreno. Em algumas ocasiões, era o próprio deus encarnado. Com uma complexa sociedade estratificada em formato de castas, a religião era igualmente refletida como tal: diversos deuses, gerações entre eles e várias mitologias (mito é uma narrativa para dar sentido a realidade; não confundir com o senso comum que diz que mito é história inventada. Utilizarei esse sentido técnico literário e não o senso comum).

As pirâmides de Gizé, no Egito. A maior pirâmide é a do faraó Quéops, concluída por volta de 2.550 a.C. (mais de mil anos antes de Moisés).
Fonte: https://escola.britannica.com.br/artigo/pir%C3%A2mide/482308/recursos/184263

Mas, como mencionei anteriormente, o Egito, Moisés e todo o povo recém liberto estão imersos no mesmo rio cultural. Sem entrar em detalhes, nessa grande correnteza de águas (algumas até turvas) estão os sumérios, os cananeus (diversas nações e não apenas uma), acadianos, dentre outros. Só que todos eles têm características semelhantes, no sentido de ligação ou contemporaneidade cultural: são panteístas, os deuses emergem de algum tipo de matéria pré-existente (como rio ou alguma região aquática) e as divindades exercem papel fundamental na criação, sendo parte dela (com seus corpos ou seu sangue) ou executando ações criativas e mantenedoras (o que chamamos atualmente de forças da natureza, como gravidade, fazer o Sol brilhar, chover etc).

Deus egípcio dos mortos, Anúbis. Pintura feita por volta do séc. XII a.C.
Fonte: https://escola.britannica.com.br/pesquisa/imagens/egito/recursos/184267

Uma expressão para sintetizar todas essas pessoas que vivem ao redor de Israel: povos do Antigo Oriente Próximo (AOP). Ou seja, AOP são todos esses agrupamentos culturais de pessoas que conviveram com Israel em algum momento e, para os nossos propósitos, na escrita e edição final do texto de Gn.

Escultura de Hamurabi (esquerda), que reinou na Mesopotâmia por volta do séc. XVII a.C. (cerca de 300 anos antes de Moisés).
Fonte: https://escola.britannica.com.br/pesquisa/imagens/mesopotamia/recursos/133938

Um outro ponto adicional, só que agora partindo do texto bíblico. Como cristão, ortodoxo e trinitário que sou, acredito na inerrância e na inspiração divina das Escrituras. Vou até um pouco mais além: acredito que Deus preservou a sua Palavra, no idioma e na escrita originais de Moisés (no caso de Gn) e que chegou até nossos dias atuais. Então, para mim, não há erros de escrita (Moisés escreveu exatamente aquilo que Deus queria que ele tivesse escrito) e não há erros teológicos (o Criador se revelou exatamente como queria se revelar). Parafraseando Deb Haarsma, se vejo algum conflito entre o que já estudei de ciência e o que leio das Escrituras, o problema está em mim, como leitor.

Agora, vamos amarrar as duas pontas: partindo que Gn está escrito em um contexto cultural apropriado (Moisés é um peixe do rio cultural de sua época), que ele é a Palavra de Deus (eu não acredito que a Bíblia contém a Palavra de Deus: ela é) e que o Criador inspirou o escritor a escrever o que ele escreveu, a conclusão é direta e simples.

Pare um pouco e pense no parágrafo anterior. Reflita, gaste o tempo que precisar. Depois, volte e veja o próximo parágrafo.

Em outras palavras: Deus inspirou Moisés a escrever o que ele escreveu. O que ele escreveu é Palavra de Deus, inerrante e inspirada. Moisés é o escritor original, escreveu um texto em um contexto original (rio cultural: idioma próprio, conhecimentos científico e religioso da época) e para um remetente original (que não são pessoas além dos israelitas do séc. XIV a.C.).

Dito de outra forma: Moisés escreveu um texto (Gn, no nosso propósito), inspirado por Deus, utilizando seu contexto cultural (documentos, tradição oral, alguma coisa escrita que tivesse em mãos e demais materiais disponíveis), para transmitir a Palavra de Deus para um remetente original. Esse remetente original entendeu, perfeitamente, a mensagem original escrita pelo autor original (Moisés) em seu contexto cultural. Ou seja, todo mundo entendeu o que Gn queria dizer porque foi escrito por alguém de sua época e para a sua época.

É claro que só isso, um texto escrito para pessoas de uma época específica, não caracteriza o texto sagrado como um todo: a mensagem, depois de entregue e entendida pelo destinatário original, transcende ao rio cultural da época, perpassando por todas as regiões do globo em todas as épocas, chegando até nós, brasileiros do séc. XXI, e chegará até o futuro (caso Cristo não volte até lá).

Vamos resumir tudo isso: Gn foi escrito como Palavra de Deus, inerrante e inspirado. Moisés, o autor / escritor original, escreveu esse texto dentro de um contexto cultural próprio (rio cultural) para um destinatário original. Esse destinatário original entendeu, perfeitamente, a mensagem original de Gn. Essa mensagem, por ser Palavra de Deus, transcende ao espaço e tempo: chega a toda Terra em todos os séculos.

Apesar do texto ser curto, acredito que há muito conteúdo para assimilar. Recomendo que releia as ideias que coloco aqui e, principalmente, leia as sugestões que deixo abaixo (todas elas são cuidadosamente escolhidas). Como você já deve observar, caro leitor do CosmoTeo, minha intenção não é escrever um tratado teológico-científico, fazer uma narrativa completa ou até mesmo uma exegese esgotada. Meu pensamento é muito simples: pinçar algumas ideias muito interessantes, frutíferas e aproveitáveis da teologia e da ciência (mesmo que essa seja buscada na antiguidade) e apresenta-las, de forma quase toda dirimidas.

É claro que tenho uma forma de pensamento e sigo uma linha, mesmo que espessa, de ideias: não existe cientista isento. Mas, procuro apresentar tudo isso de forma sincera, clara e mais simples possível. Queria até falar uma frase de encerramento boa, mas o salmista já expressou de uma forma excelente:

Oh! quão doces são as tuas palavras ao meu paladar, mais doces do que o mel à minha boca.

Salmos 119:103

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

SUGESTÃO DE LEITURA

  • O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III e John Walton com contribuição de Stephen Moshier, editora Thomas Nelson Brasil;
  • O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, por John Walton, editora IVP Academic. Infelizmente, não há edição em português, mas o inglês é facilmente lido: Walton escreve muito bem para poder ser lido e entendido;
  • The lost world of Torah: law as covenant and wisdom in ancient context, por John Walton e J. Harvey Walton, editora IVP Academic. Infelizmente, não há edição em português, mas o inglês é facilmente lido;
  • Como Ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova;
  • Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por Andre Daniel Reinke, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com o BT Books. Livro simplesmente essencial para o entendimento, de forma panorâmica, dos povos do AOP;
  • Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, por John Walton, Victor Mathews e Mark Chavalas, editora Atos;
  • Biblia Hebraica Stuttgartensia 5ª ed: este é o texto, com aparato crítico (comentários sobre a composição, a partir dos manuscritos mais perto dos originais), do AT;
  • Torá: a lei de Moisés, edição bilíngue (hebraico e português), editora Sefer: este livro contém todo o Pentateuco, comentários e explicações (em rodapé), além de outros textos judaicos (como poemas e músicas).
Escrita cuneiforme datada entre 3.100 e 2.900 a.C.
Fonte: https://www.britannica.com/place/Sumer
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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