As Origens: a origem e o caos
E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
Gênesis 1:2
A coluna de hoje será uma espécie de continuidade da saga sobre a semana da criação de acordo com o texto de Gênesis 1 e com foco na criação do mundo. Só que o texto de hoje se deterá em apenas um pedacinho do verso 2 do cap. 1 de Gn: “E a terra era sem forma e vazia”; mais especificamente nas palavras em negritos. No meio dessa discussão, que não será linguística, quero deixar o pensamento judaico (e de todo o Antigo Oriente Próximo – AOP) com relação a ideia de origens.
Essas expressões do verso 2 são traduções das palavras, em hebraico, tohoo e wabohoo (estou fazendo uma transliteração “seca” do hebraico, sem acentos, utilizando a Torá que está na sugestão de leitura). Fazendo uma tradução literal, seria algo como desolada (sem valor) e vazia (uma algo em ruínas e indistinguível). Aqui cabe uma citação direta da p. 62 do livro A ciência de Deus:
O tema presente no Antigo Testamento de uma “criação ordenada” é especialmente importante para nossa discussão, bem como a forma na qual a “ordem” é estabelecida e justificada, referindo-se a suas bases cosmológicas. Destaca-se frequentemente que essa porção da Bíblia mostra a criação como uma interação e um triunfo sobre as forças do caos.
Em um trecho próximo, na mesma página, McGrath cita que uma das formas de estabelecimento da ordem sobre o caos:
A criação é uma imposição da ordem num caos sem forma. Este modelo é especialmente associado à imagem de um oleiro trabalhando no barro para gerar uma estrutura nitidamente ordenada.
Ou seja, o nosso texto bíblico sagrado, inerrante e inspirado por Deus diz, de forma explícita, que a Terra estava em um estado de caos. Como o texto não fala sobre criação no sentido científico da forma que nós desejamos, fica a pergunta: se Deus não criou o universo e a Terra (Ele não explicita os processos físicos), como ele criou tudo?
Para responder essa pergunta é necessário entender como os povos do AOP entendiam as origens: eles não compreendiam origem de algo como nós, pessoas com conhecimento científico do séc. XXI, tem a noção de origem. Em outras palavras: quando falo a você que o universo tem uma origem, intuitivamente você imagina que antes do momento da origem do universo não existia coisa alguma (espaço, tempo e matéria) e, depois do nascimento universo, tudo veio a existir (espaço, tempo e matéria). Mas, Moisés (o representante do AOP e do povo de Israel nesse contexto) não tinha essa concepção.
A ideia de origem como algo que surge ou tem um nascimento é devido às nossas concepções modernas de cosmologia (mais especificamente, cosmologia quântica: ainda teremos séries sobre essa temática científica). O que os povos do AOP e, mais especificamente, o escritor original de Gn (Moisés) tem em mente é sobre origem funcional da natureza: não é origem no sentido material (antes não tem matéria, depois tem matéria = pensamento moderno), é função do que já existe; Gn 1:2 está falando de matéria (terra e águas) que já tem existência material definida, mas está em um estado de caos.
Agora, vamos conectar esses 2 conceitos que mencionei anteriormente: caos e origem funcional da matéria já existente. A ideia que começa no verso 2 do capítulo 1 de Gn é que Deus não nasce ou emerge do caos (como é o caso das outras mitologias; ainda falarei sobre esse detalhe em outra coluna). Como o próprio Deus, Criador, não sai do caos e toda a natureza está em um estado de caos (não interprete caos como algo ruim ou mal), Ele começa a organizar e dar funções à matéria no caos: ele organiza a matéria no meio do caos. E esse ato de organizar é a criação do universo.
Parece que está confuso. Vamos mais devagar e em pontos. Deus, o Criador, não nasce do caos primordial como as outras divindades / deuses das outras mitologias do AOP. Toda a natureza, em Gn, está em um estado de caos (tohoo e wabohoo = sem forma e vazia) e quem manda na natureza são as forças ou “divindades” do caos. Deus começa a organizar ou colocar ordem no caos através da Sua palavra: haja, ajuntem-se, produza, façamos etc. As ações dEle de organizar o caos estão relacionadas com dar funções à natureza: a função da terra é produzir vida vegetal (verso 12) e animal (versos 20 e 24), da luz são marcações (verso 14) etc.
Então, observe que o texto de Gn 1 não fala sobre origem material das coisas, sobre cosmologia, biologia, geofísica ou astronomia. A ideia de Gn 1 é sobre a origem funcional da natureza que, anteriormente (ou No princípio), estava em um estado de caos (verso 2). E mais ainda: o texto demonstra que o caos não produz o criador da natureza; Ele não está sujeito as forças do caos e ainda coloca ordem em tudo. Isso é, praticamente, um texto apologético para os outros povos do AOP com suas mitologias.
A coluna de hoje também será muito curta, pois acredito que, para você, caro leitor do CosmoTeo, há muitas reflexões a serem feitas nessas poucas frases e, talvez, você nunca tenha ouvido ou lido algo sobre. Pode ser até um choque, compreendo perfeitamente. Mas, mantenha a fé, essas questões são periféricas e não são objetos de implosão da sua salvação. Vou finalizar com uma outra belíssima citação de John Walton da p. 32 do livro O mundo perdido de Adão e Eva que resume muito bem toda essa ideia que quis transmitir:
Concluindo, o conceito de que Gênesis diz respeito ao estabelecimento da ordem carrega consigo duas ideias corolárias que estaremos introduzindo nos capítulos que seguem. Primeiro, em termos bíblicos, a ordem é relacionada ao espaço sagrado. O espaço sagrado é o centro da ordem, na medida em que Deus é a fonte da ordem. Portanto, quando falamos sobre o estabelecimento da ordem, estamos, de fato, falando sobre o estabelecimento de um espaço sagrado.
E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele.
Colossenses 1:17
Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.
Sugestão de leitura
- Estou fazendo uma série de estudos, curtos de 15 min cada, no Instagram da igreja ElShaddai, sobre a temática criação do mundo. O foco é muito simples, apenas no texto bíblico, e o público são pessoas da igreja que não tem grandes conhecimentos sobre literatura bíblica ou do AOP. A série, que ainda é atualizada, está toda nos stories https://www.instagram.com/stories/highlights/17870473496498645/;
- Dissertação A “influência do mito babilônico da criação, Enuma Elish, em Gênesis 1,1 – 2,4a, por Antonio Ivemar da Silva Pontes. Link: http://tede2.unicap.br:8080/handle/tede/886;
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- A ciência de Deus: uma introdução à teologia científica, por Alister McGrath, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- The lost world of Scripture: ancient literary culture and biblical authority, por John Walton e D. Brent Sandy, editora IterVarsity Press;
- The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, por John Walton, editora InterVasity Press. A série completa, The Lost World Series, pode ser vista no site https://www.ivpress.com/the-lost-world-series;
- O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III e John Walton com contribuição de Stephen Moshier, editora Thomas Nelson Brasil;
- O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Como Ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova;
- Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por Andre Daniel Reinke, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com o BT Books. Livro simplesmente essencial para o entendimento, de forma panorâmica, dos povos do AOP;
- Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, por John Walton, Victor Mathews e Mark Chavalas, editora Atos;
- Biblia Hebraica Stuttgartensia 5ª ed: este é o texto, com aparato crítico (comentários sobre a composição, a partir dos manuscritos mais perto dos originais), do AT;
- Torá: a lei de Moisés, edição bilíngue (hebraico e português), editora Sefer: este livro contém todo o Pentateuco, comentários e explicações (em rodapé), além de outros textos judaicos (como poemas e músicas).