Termodinâmica: introdução e Lei Zero
Até que refresque o dia, e fujam as sombras, volta, amado meu; faze-te semelhante ao gamo ou ao filho dos veados sobre os montes de Beter.
Cantares de Salomão 2:17
Ao contrário do que parece no verso anterior, hoje não comentarei sobre o livro de Cantares de Salomão e nem suas poesias de amor. O que quero destacar é a parte inicial do verso (resfresque o dia): em uma minissérie te apresentarei um pouco sobre termodinâmica. Como praticamente tudo na CosmoTeo está relacionado com cosmologia (no lado científico) a termodinâmica é essencial para entendimento do que nós medimos e sabemos sobre o universo. Por exemplo, para sabermos sobre a CMB (radiação cósmica de fundo; abaixo) e concluirmos que quando o universo tinha 380 mil anos de idade não havia estrelas, galáxias e poeira, apenas uma radiação, a termodinâmica é essencial. Outro exemplo está relacionado ao nascimento do universo: sua temperatura inicial é de 1032 graus Celsius (ou 100.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 graus Celsius) e, nessa temperatura, não há moleculas, átomos ou qualquer coisa que conhecemos hoje. A ideia será perpassar pelas leis (3 ou 4, considerando a lei zero), dar alguns exemplos práticos do dia a dia e linkar com algumas observações cosmológicas. Com isso, também pretendo tirar alguns mitos que algumas pseudociências (tentativas científicas que falham) propagam no meio cristão com suposto embasamento bíblico (científico, passa longe).
Como toda boa introdução, algumas definições. Termodinâmica é o estudo da energia térmica de um sistema. Essa área engloba temperatura, volume e pressão do sistema. Sistema é o objeto que estamos interessados em trabalhar: uma caixa fechada, que não permite saída de material, com algum gás. Exemplos: garrafa térmica (de café ou de água gelada), êmbolo de seringa, tubos por onde passam os gases de ar condicionado, geladeira ou aquecedor, um copo com água e gelo (se estiver fechado), nascimento do universo, um volume de uma estrela, uma galáxia etc. Mesmo que o sistema seja aberto é possível, teoricamente, fazer um tratamento termodinâmico delimitando os limites e, obviamente, fazendo as devidas transferências de calor / matéria. Por exemplo, posso delimitar a Terra como um sistema termodinâmico, mas tenho que considerar entrada de calor do Sol e saída de calor para o espaço.
Não farei distinção explícita sobre física estatística, mecânica estatística e termodinâmica. A termodinâmica, conforme definido acima, é uma teoria fenomenológica, ou seja, sistematiza leis empíricas sobre corpos (ou sistemas; vou utilizar os termos de forma intercambiáveis) macroscópicos (por exemplo, medida de volume, temperatura e pressão). A física estatística consiste na explicação da termodinâmica (suas leis e resultados) tomando o comportamento de um número gigantesco de partículas: da ordem de 6.1023 (ou maior). Quem rege o mundo das partículas é a mecânica quântica, mas como o número de partículas é muito grande, é impossível tratar um sistema com tudo isso: daí a aplicação da estatística. Em outras palavras, a física estatística parte de grandezas microscópicas (medidas sobre algum tipo de propriedade, como temperatura e pressão), lá na mecânica quântica (com todo o tratamento matemático e experimental que é feito no mundo microscópico), utiliza-se de métodos estatísticos e define-se as grandezas macroscópicas e suas relações: ao final disso, resgatamos a termodinâmica.
Um resuminho que tiro do livro Introduction to statistical physics, de Kerson Huang (pág. 2, tradução livre):
* Termodinâmica é uma teoria fenomenológica de estados de equilíbrio e transições entre eles;
* Mecânica estatística está relacionado com a dedução das propriedades termodinâmicas de um sistema macroscópico a partir da sua estrutura microscópica.
Historicamente, a termodinâmica foi a primeira e, de acordo com o próprio Einstein, a única física construída de forma experimental. Ou seja, se a gente “derrubasse” toda a física, seria possível refazê-la apenas com a termodinâmica (experimental). O nascimento dela pode ser colocado em 1850, quando Rudolf Clausius publicou um artigo sobre o que é conhecido como primeira e segunda leis da termodinâmica (lorde Kelvin, o mesmo da temperatura Kelvin e um cristão, também chegou as mesmas leis de forma independente). Anders Celsius (da temperatura em graus Celsius que usamos), Robert Boyle (físico e cristão; o mesmo da lei de Boyle), Robert Hooke (da lei de Hooke que vemos no 1º ano do ensino médio), James Maxwell (cristão presbiteriano da Escócia; o mesmo das leis de Maxwell do eletromagnetismo), Johannes van der Waals (da força de van der Waals, que cria uma superfície com as moléculas de água e mosquitos podem andar sobre ela), Gabriel Fahrenheit (da temperatura Fahrenheit, utilizada em outros países como EUA e Inglaterra), Sadi Carnot (do ciclo de Carnot, uma das bases dos motores de carro e moto), Willard Gibbs e Ludwig Boltzmann são alguns nomes muito importantes no desenvolvimento da termodinâmica.
Ainda como introdução algumas definições são importantes:
- Equilíbrio termodinâmico: é o equilíbrio de diversos tipos de propriedades, como térmico (relacionado a temperatura) e mecânico (relacionado a pressão e volume;
- Processo termodinâmico: são processos físicos de mudança de algumas propriedades. Por exemplo, modificação de volume de um sistema;
- Processo quase-estático: depois do sistema passar por várias perturbações (variações de propriedades como pressão e volume) e em cada perturbação o sistema entra em equilíbrio termodinâmico. Por exemplo, modifico o êmbolo de uma seringa bem devagar, modificando o volume do gás interno, mas mantendo a mesma temperatura;
- Processo isocórico: é um processo quase-estático onde faço modificações no sistema, mas mantenho o volume;
- Processo isobárico: é um processo quase-estático onde faço modificações no sistema, mas mantenho a pressão;
- Processo adiabático: é um processo quase-estático onde faço modificações no sistema, mas não há troca de calor;
- Processo isotérmico: é um processo (que pode ou não ser quase-estático) onde faço modificações no sistema, mas mantenho a mesma temperatura;
- Calor: é a energia transferida de um sistema a outro ou para o ambiente (e vice-versa). Ou seja, posso fazer uma transferência de uma quantidade de calor (energia) de um sistema a outro. Por exemplo, encostando um corpo mais quente em um outro mais frio, haverá transferência de calor do mais quente para o mais frio: o mais quente, esfriará e o mais frio, aquecerá.
Como mencionei anteriormente, não pretendo fazer uma série sobre termodinâmica e muito menos esgotar todo o assunto. Quero apenas comentar as 4 leis (lei zero e as outras três) e dar alguns conceitos a ponto de você relembrar o que já estudou na escola ou ter uma afinidade maior. Afinal, esse conteúdo faz parte da nossa vida diária e é extremamente importante para o nascimento e evolução do universo, que é meu objetivo primário. Com isso, o enunciado da Lei Zero da Termodinâmica pode ser colocado como:
Se dois corpos, A e B estão em equilíbrio térmico com um outro corpo C, de forma independente, então A e B estão em equilíbrio térmico entre si.
Em outras palavras: se o corpo A está em equilíbrio térmico com C e se o corpo B está em equilíbrio térmico com C, então os corpos A e B estão em equilíbrio térmico. Aqui, equilíbrio térmico quer dizer que eles possuem a mesma temperatura. Parece um enunciado simplista demais, muito lógico e óbvio. Pode parecer, mas esse enunciado só foi “considerado” como lei da termodinâmica apenas em 1930, quando já estava em voga a mecânica quântica, a relatividade de Einstein e a cosmologia já estava balançando nosso entendimento de universo. E, claro, décadas depois da formalização da termodinâmica e suas três leis (por isso que ela se tornou a lei zero: por ser mais básica, no sentido fundamental, e por já haver outras leis).
Mesmo a lei zero ser muito simplista, em uma primeira vista, ela tem implicações muito profundas. Primeiro, na questão de definição de temperatura, que é um conceito bem mais complexo do que aprendemos na escola (“é o grau de desordem de um sistema”). Sendo um pouco mais preciso, a definição de temperatura refere-se ao estado de equilíbrio do sistema que tem muitas partículas (da ordem de 1023 ou 100.000.000.000.000.000.000.000 partículas); isso a nível microscópico, pois, ela pode ser mensurável macroscopicamente (com um termômetro, por exemplo).
Uma palavrinha sobre estado de equilíbrio. Quando você tem um sistema fechado (que não tem trocas de energia e massa com outro sistema) de muitas partículas (muitas, no contexto de termodinâmica, é aquele número gigantesco de 1023 partículas) e deixa-o por si próprio, sem mexer, as propriedades macroscópicas que podemos medir (temperatura e pressão, por exemplo) evoluem, com o tempo, para uma constante. Ou seja, se esse sistema tinha, inicialmente, alguns gases com temperaturas e pressões diferentes, depois de inserido em uma caixa hermeticamente fechada (que não permite trocas de energia e massa com o meio externo), e deixado a ermo, depois de um tempo, esses gases alcançará o equilíbrio térmico: todos eles estarão com a mesma temperatura.
Indo um pouquinho além: um sistema fechado em equilíbrio encontra-se com igual probabilidade em qualquer um dos seus microestados. Veja que esse postulado fundamental da termodinâmica tem base experimental no macroestado: saindo da mecânica estatística (mundo micro) consigo chegar a termodinâmica (mundo macro). Você pode estar se perguntando “qual a graça de tudo isso?”. E a resposta é: usando a mecânica estatística (e a quântica) consigo derivar toda a termodinâmica, que é uma área completamente experimental! Isso é magnífico, pois a termodinâmica nasceu nos experimentos e foi formulada classicamente (sem a mecânica quântica). Depois, utilizando estatística e a quântica, indo por outros caminhos completamente diferentes, consigo derivar toda a termodinâmica de forma teórica e experimental (mecânica quântica e estatística também tem comprovações experimentais), de forma independente. Em outras palavras: a natureza é uma só e sua fonte de criação é única!
Voltando na Lei Zero da Termodinâmica. Pode parecer simplista demais, mas é o que utilizamos, de forma até inconsciente, na nossa vida diária. Por exemplo, quando usamos termômetro (os mais antigos) para ver se alguém está com febre (estabilizo a temperatura do termômetro com a temperatura ambiente), no preparo de um alimento (leite ou comidinha) para bebê (comparamos a temperatura do objeto com nossa pele), em um simples copo com água (quero beber uma água mais gelada para baixar a minha temperatura depois de atingir o equilíbrio térmico corporal) ou em um delicioso banho quente em um dia frio.
Sei que são muitas definições, mas o importante é tê-las em mãos na hora de interpretar algum fenômeno. Não se preocupe se você nunca viu isso; abaixo deixarei algumas recomendações bibliográficas. Aliás, você pode pegar qualquer livro do 2º do ensino médio e acompanhar essa minissérie. Como sempre faço em todas as outras colunas, evito ao máximo de colocar qualquer equação (isso deixa qualquer físico, como eu, no limite!) e gráfico; apenas colocarei como demonstração de beleza (sim! Equações matemáticas são como flores montadas por Deus!) ou efeito visual imediato.
Para finalizar, o que tudo isso tem a ver conosco do ponto de vista teológico? Quando Deus criou a Terra em processos que duraram bilhões de anos, Ele posicionou-a em uma localidade do sistema solar que chamamos de zona habitável: é uma posição, em relação ao Sol, que permite ter, na Terra, água em estado líquido, atmosfera e uma temperatura agradável para o surgimento e evolução da vida até chegar a nós. Sem esse ajuste fino (que será tema de outras colunas futuras) seria impossível ter vida como conhecemos aqui. E veja que são milhares de detalhes muito bem definidos!
E fez Deus a expansão, e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão; e assim foi.
Gênesis 1:7
Só isso?! Sim! Mas, ficou em dúvida, quer perguntar algo, deixar algum comentário ou sugerir algum tema, deixe abaixo! Ficarei feliz em te responder, seja nos comentários ou em algum artigo específico.
Sugestão de leitura
Para essa minissérie estou utilizando os livros abaixo. O nível deles é de início de graduação à pós, inclusive estudei em dois deles no doutorado:
- Termodinâmica, por Mário José de Oliveira, 2ª edição revista e ampliada, editora Livraria da Física;
- Foundations of statistical mechanics: a deductive treatment, por Oliver Penrose, editora Pergamon Press. Oliver Penrose é irmão do físico Roger Penrose, que ganhou o Nobel de Física este ano, 2020, pelo desenvolvimento matemático com a RG sobre os buracos negros;
- Introducton to statistical physics, por Kerson Huang, editora Taylor & Francis;
- Introdução à física estatística, por Sílvio Salinas, editor EdUSP. Prof. Salinas é uma referência em física estatística no Brasil;
- Fundamentos de física: gravitação, ondas e termodinâmica, por Halliday, Resnick e Walker, vol. 2, 7ª edição, editora LTC. É o tradicional livro (ou coleção: são 4 volumes no total) introdutório a física para quem quer algo a mais do que aprendeu no ensino médico ou está entrando na faculdade;
- Curso de física estatística, por Torsten Fließbach (ß tem um som ou pode ser transliterado por ss: Fliessbach), editora Fundação Calouste Gulbenkian.
As recomendações de leitura, que não são acadêmicas:
- Livro Astronomia e astrofísica, por S. O. Kepler e Maria de Fátima Saraiva. Este livro é disponibilizado no próprio site dos autores, que são professores da UFRGS. É um excelente material de consulta: http://astro.if.ufrgs.br/livro.pdf;
- Livro Alfa e Ômega: a busca pelo início e fim do universo, por Charles Seife, editora Roccomn. É um livro de 2007, está um pouquinho desatualizado com relação a dados (como bóson de Higgs e ondas gravitacionais), mas ainda é muito proveitoso e com uma didática muito boa;
- Livro Cosmologia física: do micro ao macro cosmos e vice-versa, por Jorge Horvath, German Lugones, Marcelo porto, Sergio Scarano e Ramachrisna Teixeira, editora Livraria da Física. Outro livro muito bom, um pouquinho técnico, mas nada que não possa ser resolvido por si mesmo. Está um pouquinho desatualizado com relação a dados por ser de 2011, porém, altamente recomendado;
- Prof. Alexandre Zabot, da UFSC, tem um curso gratuito de astrofísica geral excelente. Recomendo fortemente. Você assiste as aulas no YouTube, tem acesso ao material (slides, sites e alguns textos). Para todas as informações, links das aulas e materiais: https://astrofisica.ufsc.br/astrofisica-geral/.