As Origens: o livro de Gênesis

E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo. Estas são as palavras que falarás aos filhos de Israel.

Êxodo 19:6

Na coluna de hoje quero dar o primeiro passo, após os prolegômenos (assuntos que você precisa ter em mente antes de delinear sobre um tema) no primeiro texto da série As Origens: Gênesis (Gn). Vamos começar do começo, literalmente: o texto bíblico começa com o livro tem em seu cerne uma literatura que contrasta com as mitologias dos povos do AOP (Antigo Oriente Próximo, como sumérios, egípcios etc). Algumas visões cristãs, por exemplo o Criacionismo da Terra Jovem, interpretam esse texto (estou focando na parte sobre origens) como literal, no sentido de narrativa de fatos históricos. Ao longo da história da igreja, diversas interpretações colocaram Gn como alegórico (escola de Alexandria, nos primeiros séculos d.C.). Antes de entrarmos nessas questões exegéticas (tema para outras colunas) é necessário entendermos a constituição de Gn.

NOME

O termo Gênesis vem do grego que significa origem, nascimento. O nome que temos em nossas Bíblias vem da tradição da Septuaginta: versão grega do Antigo Testamento (AT) feita, aproximadamente, no séc. III a.C. e, muito provavelmente, era o texto sagrado utilizado por Jesus (caso não usasse a Tanakh, AT em hebraico), pelos discípulos e pela igreja até o séc. IV. Essa palavra grega é uma tradução do termo em hebraico Bereshit, que tem o mesmo sentido de origem, começo, nascimento.

AUTORIA

Vou seguir a tradição, tanto hebraica quanto a evangélica brasileira sobre a autoria de Gn (e de todo o Pentateuco: Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio): Moisés, o líder e profeta de Israel que guiou os descendentes de Abraão ao longo do deserto do Sinai até a entrada de Canaã.

É óbvio que o texto escrito que temos em mãos não teve edição final por Moisés: há diversas passagens que demonstra isso, como Gn 14:14 (Abraão persegue seus inimigos até Dã, uma região que será povoada pelos descendentes de seu bisneto). Muito provavelmente, se Moisés escreveu algo, não deve ter sido no idioma hebraico arcaico que conhecemos (esse remonta do séc. VIII a.C.; vide aqui). E mais do que isso: o começo do texto pode ter vindo de tradição oral: um passando para o outro, de forma decorada, geração a geração.

A redação final, da forma como temos hoje no original em hebraico, foi feita no séc. IV a.C., anos depois da volta do povo do cativeiro babilônico. Caso queira consultar essa redação final, escrita em hebraico (com sinais massoréticos), procure a Biblia Hebraica Stuttgartensia (esses termos não são em português), 5ª edição.

FONTE TEXTUAL

Outro ponto que podemos ter certeza absoluta, justamente por sermos cristãos e acreditarmos que a Bíblia é inspirada por Deus: há diversas fontes para o livro de Gn. É claro que Moisés não escreveu o texto sagrado do nada; isso se chama psicografia e não acreditamos que Deus tenha feito isso com Sua Palavra. O autor buscou fontes e repassou esse texto (por tradição oral e, provavelmente, por alguma coisa escrita) ao povo de Israel, recém liberto do Egito.

É bastante simples de se observar que há fontes ou que Moisés utilizou alguma (ou vasta) pesquisa: o fim de Gênesis é anterior ao seu nascimento; o último capítulo trata da morte e início da descendência das tribos de Israel já no Egito.

Sobre as fontes para a composição final do Pentateuco, há várias hipóteses, como a teoria documentária (vide um resumo aqui). Não vou discutir sobre essa temática, mas indico os livros do Gehard von Rad (na sugestão de leitura).

Página da Biblia Hebraica Stuttgartensia mostrando Gn 1:1 ao início do verso 16 com aparato crítico e sinais massoréticos

TEMA

Parece meio óbvio a resposta para a pergunta “Qual o tema do livro de Gênesis?”, mas o senso comum não é capaz de trazer todas as nuances. A maior quantidade textual do livro não é falar sobre origem do mundo, do homem, da humanidade ou da Terra. Dos 50 capítulos, com seus 1.534 versículos (na versão Torá), apenas os 2 primeiros, vão citar narrativas sobre origens. O restante do texto não tem nada a ver com nossas curiosidades científicas.

Peter Enns dá uma hipótese que, particularmente, acho muito interessante. Ele amarra a ideia de Adão (e, claro a sua criação) como sendo a própria história de Israel, ou seja, o texto bíblico está narrando a origem do podo de Deus por via de um grupo de pessoas (falarei sobre esse modelo de interpretação e Adão e Eva como uma tribo de vários indivíduos futuramente). Veja que Gn não está preocupado em descrever, literalmente e com detalhes, a origem de todos os indivíduos do mundo: ao contrário, Moisés está puxando a origem de Israel em Adão, exatamente como Lucas fez em seu Evangelho no capítulo 3.

Em outras palavras, a temática de Gn está associada com o tratamento da escolha (incluindo formação) do povo de Deus e sua descendência como uma das formas de abençoar todos os moradores da Terra (Gn 12:3).

CONTEÚDO

Há uma expressão em hebraico, toledot, que é traduzida a nós algo como “Estas são as gerações de”. Gênesis tem vários versos com essa palavra ou expressão. E isso é uma forma de descrever o conteúdo ou ver a estrutura do primeiro livro da Bíblia.

Outra forma de olhar para Gn é em uma divisão em 3 partes. A primeira é justamente onde está inserido as origens: 1:1 até o início da história de Abraão, em 11:25. A outra parte vai até o patriarca Jacó, em 37:1. O restante do livro é a terceira parte, onde contará sobre o desenrolar da história de José e os descendentes de Jacó: as tribos de Israel.

Observe, novamente, que a grande quantidade de material literário de Gn é focado na nação (ou protonação) de Israel. Origens é só um pedacinho de uma parte que tem, por foco, a linhagem inicial do povo escolhido por Deus.

O próximo passo com relação ao conteúdo do livro de Gn com foco na perícope (sessão ou pedaço de um texto) das origens é descobrir o gênero literário e as figuras de linguagem. Esse é o tipo de trabalho que não tenho a menor condição acadêmica de fazer afirmações. Como sempre faço onde não é a minha área: tomar apoio de autores da área. Nesse caso específico, estou com apoio de John Walton (prof. de AT do Wheaton College). Walton vai trazer diversos argumentos na sua coleção Série O mundo perdido (citei-a na coluna anterior, inclusive onde encontrar) destacando que esse trecho inicial da Bíblia tem muitas figuras de linguagem como hipérbole (expressões de exagero, como “já te falei 1 milhão de vezes”) e metáfora. A forma como esse texto é escrito está em uma estrutura narrativa poética e mitológica, principalmente quando se observa-o em comparação com a literatura do AOP

CONCLUSÃO

A coluna de hoje está bastante curta, com algumas informações introdutórias ao texto de Gn que, talvez, seja de amplo conhecimento do caro leitor (advindo das escolas dominicais). Alguma coisa pode ser nova ou até assustadora, em uma primeira vista, como hipótese das fontes, edição final (que é o texto que temos em mãos) vinda do séc. IV a.C. e narrativa mitológica.

Principalmente sobre essa última temática: não interprete que a Bíblia ou o texto de Gn seja mito no sentido de história inventada; não. Isso ficará mais claro na próxima coluna onde pretenderei explicar, com um pouco mais de detalhes, o que é mito, narrativa mítica e a relação de tudo isso com Gn. Aliás, em algumas colunas já toquei nesse tema; não é surpresa e, muito menos, heresia.

As bases do cristianismo (trindade, encarnação de Deus no homem Jesus Cristo e a salvação pela Sua morte e ressurreição) não são nem mexidas: fazer uma correta exegese, mesmo que isso leve a novos entendimentos literários sobre o texto de Gn não o faz um herege ou provoca a perda de sua salvação. Ao contrário: entender como o Deus Criador do céu e da Terra se revelou ao homem, de forma pessoal na Sua Palavra e isso é conectado com a Sua revelação geral (a natureza) apenas fortalece, ainda mais, a nossa fé.

Quem é este, que sem conhecimento encobre o conselho? Por isso relatei o que não entendia; coisas que para mim eram inescrutáveis, e que eu não entendia.

Jó 42:3

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

  • O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III e John Walton com contribuição de Stephen Moshier, editora Thomas Nelson Brasil;
  • O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, por John Walton, Victor Mathews e Mark Chavalas, editora Atos;
  • Biblia Hebraica Stuttgartensia 5ª ed: este é o texto, com aparato crítico (comentários sobre a composição, a partir dos manuscritos mais perto dos originais), do AT;
  • Torá: a lei de Moisés, edição bilíngue (hebraico e português), editora Sefer: este livro contém todo o Pentateuco, comentários e explicações (em rodapé), além de outros textos judaicos (como poemas e músicas);
  • Teologia do Antigo Testamento, por Walther Eichrodt, editora Hagnos;
  • Teologia do Antigo Testamento, por Walter Kaiser Jr, editora Vida Nova. São 2 volumes em 1 livro;
  • Teologia do Antigo Testamento, por Gerhard von Rad, editora Aste, 2ª ed. São 2 volumes em 1 livro.
As duas frases, mais escuras, escritas em grego arcaico, começam o texto do Códice Vaticanus com Gn 1:1 e o início do verso 2. Este texto advém da versão Septuaginta (tradução do AT para o grego). Você pode conferir a escrita em grego desse trecho aqui.
Fonte da imagem: https://digi.vatlib.it/view/MSS_Vat.gr.1209/0005
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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