Série As Origens: Prolegômenos

Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência.

Jó 38:4

A coluna de hoje inaugurará uma série que, ao meu ver, será a mais detalhista: as origens. Aqui tentarei perpassar por aplicações mais bíblicas e apresentar modelos de interação entre ciência e fé cristã tendo por ponto de partida as origens do universo, da Terra, do homem e do pecado (ou queda). Só que ela terá fortes relações com outras séries e colunas, como cosmologia, visões cristãs sobre as origens e as relações entre ciência e fé cristã, dentre outras.

Sobre minha posição pessoal com relação às origens já mencionei em várias outras colunas (como aqui) que não falo em nome da ABC² ou da Igreja Batista da Graça, instituições da qual faço parte. A ABC², por exemplo, não toma partido em visão qualquer, deixa seus membros livres para que o façam de forma respeitosa e educada. É claro que eu tenho alguma posição, mas que não segue a caixa fechada ou pacote completo de algum modelo de interação entre fé cristã e ciência: vejo falhas em todos os modelos, assim como algum ponto favorável.

A série As Origens trabalhará com o texto de Gênesis tentando dar alguns modelos possíveis sobre as perguntas mais específicas ou detalhistas. Não pretendo fazer teologia bíblica ou sistemática e muito menos estabelecer doutrinas bíblicas; para tal tarefa já temos milhões de excelentes livros, inclusive em português (muitos farei uso). É claro que estou correndo o risco de ficar desatualizado a qualquer instante ao apresentar modelo explicativo sobre algum evento bíblico dado a alguma pesquisa mais atual. Por outro lado, pretendo te mostrar que é assim que a pesquisa é feita e, principalmente, não há contradição ou conflito entre fé cristã e ciência.

Algumas palavras sobre o livro de Gênesis. Vou assumir a autoria de Moisés e sua escrita no séc. XIV a.C. Estou ciente de muitas pesquisas literárias sobre o texto, várias teorias sobre sua composição (como as hipóteses das fontes: javista, sacerdotal, elohista e deuteronomista), edição posterior (provavelmente após o cativeiro babilônico no séc. VI a.C.) etc. Também sei que o Pentateuco, principalmente o livro de Gênesis, tem boa parte origem na tradição oral. Mas, para efeitos de simplificação, colocarei tudo na conta do libertador do Egito. Recomendo, para se ter uma ideia desses pontos, o livro do Gerhard von Rad, que estará na sugestão de leituras, assim como outros sobre essa temática.

O contexto histórico onde o livro foi escrito é a região atual do Oriente Médio. Como estou assumindo como remetente original o próprio Moisés, o Egito é o principal ator: é a potência mundial militar, cultural e econômica. Mas, todo o povo de Israel está trafegando por outras culturas de outros povos (que chamamos de AOP: Antigo Oriente Próximo), como babilônicos, sumérios e cananeus. Em Canaã, apenas para se ter uma noção, não é um único povo homogêneo: são diversas tribos, com várias culturas e rituais religiosos. Então, é bastante claro que há diversas culturas ao redor que influenciam e são influenciadas por Israel: ele não está isolado do mundo. Aliás, o próprio texto bíblico está farto de exemplos colocando as 12 tribos em contato constante com esses povos: sendo subjugado frequentemente (livro de Juízes está cheio de detalhes), assimilação e cultos ditos pagãos (livro de I e II Reis, incluindo até o próprio rei Salomão) e a tacada final que é o cativeiro babilônico com a volta de alguns sob a liderança de Esdras, Neemias e Zorobabel (final do AT, Antigo Testamento). Isso sem contar na confluência cultural que o cativeiro assírio provocou no reino do Norte (termo atual para designar 10 tribos).

Em termos históricos, acredito que as bases são essas citadas acima. Como disse, tem muito conteúdo teológico e histórico que não abordarei nessa série, mas convido a você, caro leitor, a sempre conferir a sessão de sugestão de leituras para expandir seu conhecimento. Inclusive, obras importantíssimas, que usarei bastante, são dos autores John Walton (principalmente a coleção, em inglês, The lost world of; alguns estão traduzidos em português e sempre farei menção a essas versões brasileiras), Tremper Longman III (que tem obras a parte e em conjunto com Walton) e do André Reinke (publicou o livro Os outros da Bíblia e já tem outro lançamento, Aqueles da Bíblia).

Antes de finalizar, vou dar um pequeno ponto introdutório sobre as origens dentro do livro de Gênesis. Aliás, a parte mais fácil: o que o texto sagrado não fala sobre as origens do universo, da Terra e do homem. Essa parte é a mais fácil porque o texto bíblico não menciona, absolutamente nada, sobre as origens do universo, da Terra e do homem em processos físicos e biológicos: não há ciência, no sentido como conhecemos, em Gênesis.

Isso é bastante claro ao observarmos como é a cultura do remetente, do destinatário e da mensagem originais. Estamos no séc. XIV a.C., saindo do Egito depois de séculos de julgo pesado, ao lado de Moisés, no deserto do Sinai, entrando em Canaã. O que se tem de conhecimento científico é nulo: não há experimentação, teorização ou observação de fenômenos como fazemos com método científico atualmente, que é herança do séc. XV d.C. até hoje. E, lendo os documentos em escrita cuneiforme dos babilônicos, por exemplo, vemos que a forma de descrever a realidade é sob a narrativa mítica: o mito vai traduzir a realidade vista pelos povos do AOP, incluindo Israel, através de uma estrutura literária. Ou seja, mito não é uma história inventada, e sim, uma narrativa para dar sentido ao que está acontecendo naquele momento e conectar com o passado não em termos de origem material, física ou biológica: por isso que aparecem divindades, caos e forças da natureza moldando o mundo nas narrativas.

Um outro ponto muito fácil de se observar no texto de Gênesis 1 é que a narrativa não está escrita em formato científico, com equações ou argumentos afim de matar a curiosidade de um leitor brasileiro do séc. XXI. Esse texto tem mais de 3.500 anos! Observe o que mudou na literatura brasileira, em termos de linguagem e narrativas, em português mesmo, entre o séc. XIX e hoje. Temos dificuldades e intensas discussões em livros do tipo José de Alencar e até Machado de Assis, que não tem nem 250 anos de distanciamento cultural-temporal. Agora, tente imaginar a dificuldade exegética em Gênesis: idioma hebraico arcaico (que não existe mais), cultura completamente diferente até na época de Davi ou de Cristo (“apenas” 400 e 1.500 anos depois de Moisés, respectivamente), não há autógrafos de Moisés (texto original escrito por ele, apenas cópias de cópias; não constitui um problema em si, mas uma dificuldade a mais) e forma de pensar diferente da cultura ocidental do séc. XXI (essas culturas tinham pensamento com intuito de ver sentido, propósito e função da realidade e seus componentes; por isso o uso da narrativa mítica).

Resumindo: o texto clássico que tomamos como origens, Gênesis, não fala sobre origem material do universo, da Terra e da vida. Ele traça elementos de função em uma narrativa mítica dentro de uma estrutura poética e uso de diversas figuras de linguagem, como hipérbole, metonímia e comparação, além de outras que nem temos em português.

É óbvio que, com tudo isso, não estou descartando o texto sagrado como base do cristianismo: a Bíblia, incluindo o livro de Gênesis, é a Palavra de Deus, inerrante, infalível e inspirada. Em momento algum assumirei qualquer doutrina da teologia liberal. Agora, o que faremos com o texto que chamamos de criação (no sentido material) em uma perspectiva que unifica ou conecta a teologia cristã com a ciência, é matéria de discussão e pretendo sintetizar e, talvez, contribuir um pouquinho com meu simples e pequeno conhecimento, sempre tomando por base que a Bíblia é a Palavra de Deus, inerrante, infalível e inspirada e, conectado a tudo isso, não conflita em ponto algum com a ciência. Afinal, o Autor do livro da Natureza é o mesmo Autor do texto sagrado e, com isso, não há conflito entre os dois livros. Se há algum conflito, ele reside no leitor dos dois livros, na interpretação bíblica, na interpretação científica ou em ambas!

Por hoje é apenas isso: um texto curto, mais basilar para nossas futuras discussões. Não deixe de conferir, sempre, as sugestões literárias que faço abaixo, pois muitos temas que, às vezes nem cito ou deixo implícito, estão dirimidos em livros e outros materiais destacados abaixo. E, um convite que faço de coração a você, leitor do CosmoTeo: não é necessário concordar comigo em algum ou todos os pontos, muito menos desviar dos caminhos do Senhor. Leve toda essa discussão para seus pensamentos, pese-a e reflita sobre. Nossa salvação depende unicamente da obra de Cristo, e não do conhecimento científico ou teológico sobre origens, da intenção original na mensagem que os israelitas entenderam e nós, talvez, não estamos entendendo. O meu propósito é apenas dar mais sustância a discussão bíblica e cientifica de forma integrada e, se possível, matar algumas curiosidades com alguns possíveis modelos de interação entre ciência e fé cristã.

Ou com o teu entendimento chegaste às larguras da terra? Faze-mo saber, se sabes tudo isto.

Jó 38:18

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

  • Teologia do Antigo Testamento, por Gerhard von Rad, vols 1 e 2, editora Aste. É um bom livro e faz uma boa discussão sobre a hipótese documental e as fontes que compõe o Pentateuco;
  • Teologia do Antigo Testamento, por Walther Eichrodt, editora Hagnos. É um clássico da literatura bíblica e dá excelentes panoramas sobre a teologia da aliança, até para vermos como é o fio condutor do desenvolvimento da história, que começa no Gênesis, feito por Deus;
  • Como ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova. Um excelente livro, bastante simples e nada técnico;
  • Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por André Reinke, editora Thomas Nelson Brasil. Um bom livro que mostra muitos detalhes históricos e culturais dos povos do AOP;
  • Dissertação A “influencia do mito babilônico da criação, Enuma Elish, em Gênesis 1,1 – 2,4a. É um interessante trabalho feito por Antonio Ivemar da Silva Pontes e que está disponível em http://tede2.unicap.br:8080/bitstream/tede/886/2/dissertacao_antonio_ivemar.pdf;
  • O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • A origem: quatro visões cristãs sobre criação, evolução e design inteligente, de Ken Ham, Hugh Ross, Deborah Haarsma e Stephen Meyer. Editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III e John Walton com contribuição de Stephen Moshier, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Série de livros The lost world series: The lost world of Adam e Eve (acima tem a edição em português), The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, The lost world of Scripture: ancient literary culture and biblical authority, The lost world of israelite conquest: covenant, retribution, and the fate of canaanites, The lost world of the flood (acima tem a edição em português) e The lost world of the Torah: law as covenant and wisdom in acnient contexto. Todos esses livros dessa série podem ser vistos no site da editora InterVarsity Press https://www.ivpress.com/the-lost-world-series. Recomendo fortemente essa série, que é escrita por John Walton e vários outros colaboradores.
Nebulosa da Águia, um berçário de estrelas.
Fonte: https://www.esa.int/Space_in_Member_States/Portugal/Uma_nova_visao_de_um_icon
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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