As Origens: características da mitologia bíblica

E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.

Gênesis 2:7

A coluna de hoje tecerá sobre a literatura mítica do Antigo Oriente Próximo (AOP) e compararei com a literatura bíblica. Como já vimos na coluna sobre a cultura do AOP, literatura é essencial para entendimento do pensamento que os povos ao redor de Israel tinham com relação aos seus deuses, à natureza e a relação entre esses entes. E isso está intrínseco em Israel: como vimos na última coluna Moisés e todo o povo que tinha acabado de sair do Egito estava no mesmo mundo onde viviam os sumérios, cananeus etc; não só no sentido físico, mas principalmente no sentido cultural. Mais do que isso: esse tipo de formatação de pensamento dos povos do AOP, que tem em comum algumas características com Israel, vai refletir diretamente no Antigo Testamento e, no nosso caso, em Gênesis (Gn).

Com tudo isso em mente (caso queira algo mais sequencial, basta acompanhar toda essa série As Origens) e, principalmente, com a definição já posta sobre o que é mito, que trabalhei na última coluna, vou delinear algumas características sobre a literatura do AOP. Como já deve ser, quase que explícito, toda essa literatura está em formato de narrativa mítica e a escrita em uma estrutura poética, análogo ao que conhecemos como poemas ou poesia.

Mas, por qual motivo esses povos tão antigos (estou datando entre 4 mil a.C. e 1.500 a.C.) escreviam sua literatura em estrutura poética? E por quê em narrativa mítica? Sinceramente, não sei responder; lembre-se que sou um simples físico, cristão, que está escrevendo reflexões sobre o texto bíblico com cosmologia. Linguagem, literatura antiga, idioma, poesia e letras, de forma geral, passa muito longe do que estudo (que são equações matemáticas que caracterizam estruturas físicas do universo). Tenho lido um pouco, na medida que meu intelecto permite acompanhar, gosto muito das obras do John Walton (apesar de discordar de um ponto ou outro; isso é detalhe técnico que nem abordarei aqui) e tento explicar o pouco que aprendo. Só que, com a veia de cientista e curioso (todo físico tem esse elemento intrínseco no seu ser), darei alguns chutes (literalmente, é essa a palavra; nem chega a ser hipóteses).

Olhando para nosso processo evolutivo como ser humano, o máximo que conseguimos voltar atrás no tempo na questão de comunicação entre humanos é o que está registrado e sobreviveu ao longo dos tempos: escrita. Claro que poderíamos ter algum tipo de “tradição oral arcaica” entre as outras espécies de Homo (a nossa é Homo sapiens), formas de comunicação por sinais (análogo a LIBRAS) ou por pinturas rupestres (pinturas feitas por Homo sapiens e outras espécies de humanos antigos em cavernas; algumas com datação de quase 40 mil anos). Mas, o que podemos nos embasar de forma sólida, até esse momento pela arqueologia, é a escrita cuneiforme, com datação entre 3.500 e 3.000 a.C. (veja aqui um interessante artigo). Apesar de antigo, não encontrei descobertas arqueológicas mais recentes que mudam essas datas), surgindo como o primeiro registro de comunicação. O cuneiforme é uma forma de escrita em tabuinhas de argila para registrar comércio, literatura, leis e outros aspectos da vida social dos sumérios (ou, melhor dizendo, mesopotâmios: os sumérios estão ao sul da antiga Mesopotâmia. Atualmente, ao sul de Bagdá e Iraque).

Outro detalhe que devemos observar, dentro dessa minha especulação, é a questão do homem ser curioso e observador desde sempre. Verificar padrões é algo da própria natureza humana: astronomia nasceu justamente desse tipo de prática. Outro componente que coloco é a necessidade do divino, aquele espaço interno da natureza humana que é preenchido por Deus, por deuses, por ídolos ou qualquer outro tipo de necessidade de adoração ou sentimento de transcendência. Somando tudo isso (escrita, observação da natureza e necessidade metafísica) temos uma construção para algo que chamamos de mito.

A definição de mito, que sintetizei na última coluna, é uma narrativa para dar sentido ao mundo. Como isso é feito vai depender exclusivamente de como a cultura é construída. E, olhando daqui para o passado, fica fácil: no AOP temos deuses que constrói o mundo a partir de ações ou sendo, eles mesmos, partes da natureza. Ainda não entrarei nos mitos do AOP, como Gilgamesh e outros; ainda quero relacionar esse tipo de pensamento e de construção literária do AOP com o AT. Aliás, qual a conexão entre as duas literaturas?

Verifique os pressupostos culturais que sintetizei na última coluna: AT não foi destinado a nós, AT é inspirado por Deus, AT é um veículo escrito da revelação especial de Deus, Israel e os povos do AOP compartilham do mesmo mundo antigo (mesmo rio cultural), mito é uma narrativa para dar sentido ao mundo. Separando os pontos, com AOP de um lado e Israel do outro, o que temos são narrativas para dar sentido ao mundo (literatura do AOP e AT), Deus e deuses como responsáveis pela montagem do mundo (lembre-se que os povos não tinham a mentalidade científica que temos sobre origem das coisas; ficará claro nas colunas seguintes esse ponto) e, para as 2 partes, há funções específicas para o homem, além da conexão entre a natureza e o divino (uma espécie de sacerdote).

Antes de concluir, quero utilizar uma citação direta de uma dissertação que, para mim, é muito boa nessa parte inicial sobre mito. Antonio Ivemar da Silva Pontes publicou uma dissertação na Universidade Católica de Pernambuco em 2010 sob o título A “influência do mito babilônico da criação, Enuma Elish, em Gênesis 1,1 – 2,4a. É um texto muito bom sobre ciência da religião e pretendo utilizá-lo em outras oportunidades (o link para ler estará na sugestão de leitura no final). A citação, que está em português e na pág. 53:

Croatto (1996, p. 16-22), afirma que os textos míticos da Bíblia querem ser uma resposta às perguntas fundamentais do homem que faz a experiência com o Deus dos pais e da libertação do Egito. Afirmar que Deus está na origem é dizer tudo. Nesse sentido, o Pentateuco como um todo é um grande mito fundacional.

Se esse trecho te parecer muito pesado ou forte demais, releia e reflita, com calma, tendo em mente tudo aquilo que já trabalhei até agora. Simplificando, todo o texto de Gn (o Pentateuco e o AT a gente pode pensar depois; foque apenas em Gn por enquanto) que fala sobre origens tem características semelhantes a uma narrativa mítica: o texto dá sentido ao mundo, coloca a divindade (Deus cristão) como Agente organizador e mantenedor da natureza, Deus cria o homem como sendo um elo de conexão entre a natureza (análogo a um sacerdote em um templo) e tem relação direta com ele.

Tudo parece estar muito bom, toda a literatura está, de forma panorâmica, certinha e fazendo sentido. A próxima pergunta, natural e legitima é: diante de tudo isso, como (processos físicos, idade, ferramentas e ações diretas) Deus criou o mundo? Essa pergunta pode vir carregada de visões cristãs (como as vertentes do criacionismo), pressupostos filosóficos e outras ideias de diversas fontes. Mas, veja que essa pergunta, diante do texto sagrado, inspirado por Deus e inerrante, não faz sentido: perguntar a Bíblia como o universo foi criado, como o homem foi formado, de onde veio a Terra ou se o dilúvio é universal ou local (sim! Vamos tratar de dilúvio) é especular sobre assuntos que não há tratamento. Em outras palavras: a Bíblia não é um livro científico, não trata sobre origens como entendemos modernamente e não dá respostas sobre processos físicos, químicos ou biológicos sobre o universo, a Terra, o homem, o dilúvio ou qualquer outro tipo de assunto sobre origem que desejamos.

“Pronto! Fim do CosmoTeo!” Não tão rápido assim. O que quis te demonstrar até agora, caro leitor, é o que não tem na Bíblia ao analisa-la dentro de seu contexto cultural original e dentro de sua literatura própria (comparando-a com outras literaturas de mesmo rio cultural). O que farei, daqui em diante, é analisar as origens do universo, da Terra, do homem, o dilúvio e a torre de Babel dentro da cultura do AOP através da sua literatura (dos mitos de outros povos) e fazer uma comparação com Gn. Por outras séries, como a de Cosmologia, estou tratando da origem do universo e da Terra como revelação geral divina, mas utilizando a ferramenta correta, que não é a Bíblia: ciência. No fim de tudo, temos um quadro completo de toda a realidade, criada por Deus e que se revela por 2 livros: a Bíblia e a natureza.

Porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele.

Colossenses 1:16

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

  • Dissertação A “influência do mito babilônico da criação, Enuma Elish, em Gênesis 1,1 – 2,4a, por Antonio Ivemar da Silva Pontes. Link: http://tede2.unicap.br:8080/handle/tede/886;
  • O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, por John Walton, editora InterVasity Press. A série completa, The Lost World Series, pode ser vista no site https://www.ivpress.com/the-lost-world-series;
  • O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III e John Walton com contribuição de Stephen Moshier, editora Thomas Nelson Brasil;
  • O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Como Ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova;
  • Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por Andre Daniel Reinke, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com o BT Books. Livro simplesmente essencial para o entendimento, de forma panorâmica, dos povos do AOP;
  • Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, por John Walton, Victor Mathews e Mark Chavalas, editora Atos;
  • Biblia Hebraica Stuttgartensia 5ª ed: este é o texto, com aparato crítico (comentários sobre a composição, a partir dos manuscritos mais perto dos originais), do AT;
  • Torá: a lei de Moisés, edição bilíngue (hebraico e português), editora Sefer: este livro contém todo o Pentateuco, comentários e explicações (em rodapé), além de outros textos judaicos (como poemas e músicas).
Manuscrito acadiano em argila, escrita cuneiforme, datado em 1.250 a.C. Para saber sobre a história desse documento e o que ele tem narrado, vide a fonte em https://www.schoyencollection.com/history-collection-introduction/babylonian-history-collection/judgement-two-kings-ms-1995-1
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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