A Terra é plana? Questões sobre o terraplanismo
No ano seiscentos da vida de Noé, no mês segundo, aos dezessete dias do mês, naquele mesmo dia se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram,
Gênesis 7:11
A coluna de hoje está baseada em algumas questões que pessoas mandaram pelo meu Instagram: fiz uma enquete no Stories perguntando aos seguidores o que gostariam de saber sobre a série A Terra é plana?. Resumi as perguntas em três tópicos, como estão abaixo, pesquisei sobre as questões e, obviamente, responderei baseado no conhecimento que obtive (talvez não tão aprofundado quando queria que fosse) e em opiniões de como vejo. Claro, parto de um fundamento físico e teológico.
História moderna do terraplanismo
A ideia da Terra plana, como você pode observar em toda a série é bem antiga, remontando as primeiras observações que o homem fez ao seu redor. A ideia de uma Terra esférica também é antiga, começando (talvez até antes) na Grécia e sendo consolidada com Copérnico e Kepler. As primeiras imagens, ou seja, as evidências visuais, só apareceram no séc. XX com o lançamento de satélites e o homem à Lua (sim! Vários homens foram a Lua várias vezes).
Só que a pergunta é mais específica ao movimento moderno da Terra plana ou, o que chamo aqui de terraplanismo. Esse movimento, pelo que pude pesquisar na internet, tem seus primórdios no séc. XIX com o livro Zetetic astronomy: Earth not a globe (publicado em 1865, mas já era panfletado desde 1846) por Samuel Rowbotham. A versão que possuo em mãos (ainda é vendido em sites de livros) é a 3ª edição, datada de 1881. Ele é dividido em 14 sessões onde cada uma faz ou demonstra experimentos que “refutam” a terra esférica: Terra não se move, a verdadeira distância do Sol (menos de 4 mil milhas) e das estrelas (no máximo 6 mil milhas), causas dos eclipses solar e lunar, nascer e pôr do Sol, dentre outras questões. Caso você tenha oportunidade de ler este livro (acho que não foi traduzido para o português; encontrei apenas a versão em inglês) compare alguns testes que ele propõe com o que conversamos nessa série até agora.
Consultando a Wikipédia (gosto dela para buscar referências como artigos e livros, e não como fonte de pesquisa primária) encontrei o texto One hundred proofs that the Earth is not a globe, por Carpenter. As 100 provas que ele propõe seguem as ideias de Parallax (pseudônimo de Rowbotham) e foi publicado em 1885.
Dando um salto maior na história chegamos ao famoso Samuel Shenton que fundou, em 1956, o International Flat Earth Research Society (IFERS) em Dover, Inglaterra. Consultando, novamente, a Wikipédia houve vários problemas com a IFERS (desfalecendo-se no início dos anos 2000) e em 2009 ela foi ressuscitada na internet com o conhecido nome The Flat Earth Society. Nesse fórum, que ainda tem discussão (o último post que vi foi datado em 12 de dezembro de 2020, 15:46), há vários detalhes e, diria eu, fundamentos do que seria a “Terra plana” ou o movimento terraplanista de hoje. Inclusive, na série aqui no CosmoTeo busquei fontes desse mesmo fórum.
Agora, respondendo mais explicitamente a pergunta que me foi feito sobre a história do terraplanismo: de forma moderna consegui datar a origem desse movimento na segunda metade do séc. XIX. Não há uma liderança única, mas uma espécie de sociedade. A forma como as pessoas se organizam é com ideal de “refutar” a Terra esférica com argumentos conspiratórios (mais recentemente) e com conhecimento científico muito limitado. Mesmo com 150 anos de debates e discussões, ao que parece é que essas pessoas pararam no tempo ou ainda querem que a “ciência” antiga continue funcionando como se a gente não tivesse tido desenvolvimento científico e tecnológico.
Motivos de se acreditar em terraplanismo
A pergunta que veio foi bem direta e simples: por que as pessoas acreditam em Terra plana? Aliás, simples não é porque abrange muitas motivações pessoais que eu não sei avaliar; talvez um psicólogo possa responder até bem melhor o combustível motivacional para tal. Mas, vejo uma motivação, que destacarei, e é bem sincera: colocar, na Palavra de Deus, uma autoridade a mais.
Já conversei com algumas pessoas terraplanistas e o que as movem, primariamente, é um cuidado até excessivo com relação à Bíblia: ela é a Palavra de Deus, inerrante, infalível e fonte primária de ciência. Para eles, a leitura do texto sagrado, por ser revelação direta de Deus, deve ser a mais simples e literal possível. Ou seja, se na Bíblia menciona domo, firmamento, comportas do céu (no caso do dilúvio), estrelas fixas e outros detalhes astronômicos, então esses objetos são descritos de forma literal: há ciência nessa discricionariedade e deve ser seguida por cristãos. Essas pessoas são muito semelhantes aos criacionistas da Terra jovem: a leitura do texto bíblico deve ser literal (ao pé da letra) e a ciência, uma construção falível e deturpada pelo homem, deve ser preterido ou, no máximo, jogado em escanteio e buscado apenas quando estiver em conforme com a Bíblia (na cosmovisão própria).
Em resumo, muitas pessoas que acreditam em terraplanismo, pelo lado cristão, são motivadas por um apresso exacerbado ou atribuem o texto bíblico leitura que despreza a exegese (texto no seu contexto cultural e com mensagem primaria ao destinatário original) em uma tentativa, frustrada, de retirar ciência de um livro que não tem esse objetivo. Um outro grupo, misturando cristãos e não cristãos, tem alguma outra motivação que, talvez, perpasse por teorias de conspiração.
Negacionismo científico, relativismo e pós modernidade
A outra pergunta é bastante ampla e foge, em parte, da temática de terraplanismo e dos objetivos da CosmoTeo: negacionismo científico é um sintoma da pós modernidade? O relativismo chegou até a ciência?
Sem entrar nos detalhes sobre a pós modernidade (deixarei uma referência sobre esse assunto nas sugestões de leitura abaixo) eu não diria que o negacionismo seria um sintoma, mas uma expressão de verdade. Em outras palavras, em uma mentalidade pós-modernista: a ciência como nós conhecemos não expressa a verdade e a realidade; como eu escolho a ver a realidade (que pode ser diferente da sua), negar a ciência é uma opção de ver o mundo com essa cor. Ou seja, como tudo é relativo, não há verdade absoluta e objetiva, uma das formas de se ver o mundo é negando a ciência. É claro que qualquer relativista pode discordar dessa minha afirmação, mas ela tem igual valor (para um negacionista) como qualquer outra verdade variável.
E isso entra o terraplanismo: uma forma negacionista (da ciência) de se ver o mundo como eu quero, usando a Bíblia como desejo e vendo conspirações da NASA em conluio com aliens governando os EUA e projetando um império intergaláctico envolvendo a Terra. É maluquice completa, claro, mas essa opinião como verdade ou cosmovisão particular é tão válida quanto a qualquer outra: essa é a herança do relativismo ou da pós-modernidade.
A impossibilidade do terraplanismo
Outra pergunta veio, talvez até antes da coluna sobre a lei da gravidade de Newton, que questiona se realmente é impossível a Terra ser plana.
Sendo muito objetivo e direto: sim, é impossível a Terra ser plana ou ter qualquer tipo de modelo funcional fisicamente que seja análogo ao terraplanismo. Na série apresentei alguns motivos: lei da gravitação de Newton (por ser radial), falha do terraplanismo ao explicar os eclipses solar e lunar e erro crasso de exegese bíblica no exemplo de Josué. Nem cheguei a trabalhar, explicitamente, a questão de distancias da Terra ao Sol e Lua porque ali já é muito exagero e insano qualquer crença se baseando em distância da ordem de 10 mil km (talvez até detalhe mais esse ponto em uma outra coluna).
Conclusão
As ideias do terraplanismo não subsistem a uma acuracidade científica ou teológica, ou seja, lendo um pouco mais o texto bíblico e observando melhor o que a ciência produz já é o suficiente para questionar o que eles fazem (sim, é importante e imprescindível o senso de questionamento) e encontrar as soluções. Claro que podem ter questões mais complicadas e talvez argumentos que sejam mais capciosos que precisem de mais elaboração nas respostas: por isso que se tem o CosmoTeo e outras fontes.
Agradeço, de coração, as perguntas feitas por via do Instagram e deixo-o completamente livre para mais questões, incluindo a sessão aqui no site.
Ele é o que está assentado sobre o círculo da terra, cujos moradores são para ele como gafanhotos; é ele o que estende os céus como cortina, e os desenrola como tenda, para neles habitar;
Isaías 40:22
Só isso?! Sim! Mas, ficou em dúvida, quer perguntar algo, deixar algum comentário ou sugerir algum tema, deixe abaixo! Ficarei feliz em te responder, seja nos comentários ou em algum artigo específico.
Sugestão de leitura
- Livro Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo, por Stanley Grenz, editora Vida Nova;
- O tradicional site do CREF tem muito conteúdo sobre terraplanismo e recomendo fortemente. Não sei se todos os posts são deles, mas o professor Lang tem uma boa didática e simplicidade ao escrever sobre essa temática: https://www.if.ufrgs.br/novocref/?cat=31;
- Livro A ciência de Deus: uma introdução à Teologia Científica, por Alister McGrath, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Livro Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião organizado por Ronald Numbers, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Livro Entendes o que lês? Um guia para entender a Bíblia com auxílio da exegese e da hermenêutica, por Gordon Fee e Douglas Stuart, 3ª edição revisada e ampliada, editora Vida Nova;
- Livro Introdução à hermenêutica reformada: correntes históricas, pressuposições, princípios e métodos linguísticos, por Paulo Anglada, editora Knox Publicações.