Relação Ciência e Fé Cristã: John Polkinghorne, o pastor e o cientista

Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé.

2 Timóteo 4:7

Nessa série Ciência e Fé Cristã gostaria de falar um pouco sobre John Charlton Polkinghorne. Um nome que, talvez, não seja tão conhecido no meio evangélico brasileiro: era um pastor na Inglaterra, igreja anglicana (um outro anglicano muito conhecido é o saudoso John Stott). Mas, além de pregar na igreja aos domingos, Polkinghorne era um grande cientista. Mais do que isso: foi professor na Universidade de Cambridge, além de ter passado pela Universidade de Edimburgo.

Polkinghorne foi físico e matemático. Se formou em matemática, graduação, no Trinity College e fez doutorado em física teórica, na área de física de partículas. Seu orientador foi Abdus Salam, o grande físico paquistanês que ganhou Nobel de Física por fazer unificação dentro de física de partículas. Ainda trabalhou com Paul Dirac, um dos pais da física quântica e Nobelista de Física, e Murray Gell-Mann, outro grande físico e também um dos pais da quântica. Dentre seus orientados, destaco os físicos Tom Kibble e James Stirling, nomes muito importantes e conhecidos na física teórica.

Como se tudo isso fosse pouco, ainda recebeu, em 1997, a nomeação de Cavaleiro Comandante da Ordem do Império Britânico (ou Knight Commander of the Most Excellent Order of the British Empire: uma ordem da cavalaria britânica, estabelecida pelo rei George V em 1917, e que reconhece as mais importantes contribuições de indivíduos para artes e ciências, na sociedade civil. Ainda era membro da Royal Society, a mais antiga sociedade científica do mundo, fundada em 1660. Em 2002 ganhou o Prêmio Templeton, uma espécie de “Nobel da Espiritualidade”, onde são nomeados pessoas de diversas áreas do conhecimento e que se notabilizaram por pesquisas no progresso sobre religião.

Laureados do prêmio Templeton (da esquerda para direita): Charles Taylor (2007, filósofo), Freeman Dyson (2000, físico), John Polkinghorne (2002, físico), John Barrow (2006, físico), Ian Barbour (1999, físico), Holmes Rolston (2003, filósofo) e Martin Rees (2011, físico).
Fonte: https://mountainscholar.org/handle/10217/67441

Poderia escrever páginas e páginas descrevendo os trabalhos do prof. Polkinghorne, tanto na igreja anglicana como na física. Mas, o que quero destacar é o trabalho, muito intenso, que fazia na relação entre ciência e fé cristã: se você olhar no site da Amazon, apenas na sessão em português, há 4 livros publicados, sendo 3 falando sobre a relação entre ciência e fé cristã. Olhando para as edições em inglês, a Amazon disponibiliza mais de 30 livros. E, novamente, a grande parte é relacionando ciência e fé cristã. Isso sem contar os milhares de artigos que se tem por ai: por exemplo, no site da ABC² há um interessante texto traduzido para o português falando sobre o debate entre religião e ciência. E há, também, um outro artigo magnífico sobre princípio antrópico (inclusive, falei sobre essa temática em 2 vídeos utilizando esse artigo como base: aqui e aqui).

Mesmo com toda a formação acadêmica e teológica (estudou teologia e foi treinado para o ministério pastoral, inclusive assumindo cargos na igreja anglicana), Polkinghorne se dizia que era “basicamente um cientista com fortes interesses em teologia” (livro O teste da fé: os cientistas também creem, p. 121). Suas contribuições são imensas no campo da fé cristã e ciência e seu pensamento, nessa intersecção, é vasto. Conheci, um pouco, sua obra através da ABC², inclusive suas publicações científicas. Tenho uma longínqua lembrança de já ter lido um livro, dele, sobre mecânica quântica em algum momento na graduação ou na pós, mas não tenho a memória fixada no nome dele (li muita coisa quando estava estudando e quando pesquiso, mas nem sempre decoramos o nome do autor).

Um dos primeiros textos que li diretamente dele é o cap. 8 do livro O teste da fé: os cientistas também creem, que é um compilado de artigos, quase que testemunhos próprios, de vários cientistas cristãos, que foram organizados por Ruth Bancewicz (outra cientista cristã). Há um trecho, nesse texto, que me chamou atenção, dentre vários outros, na p. 124:

Penso ser extremamente importante que a comunidade cristã leve em conta o fato de que o Deus que é o Criador da natureza age tanto por meio de processos naturais, quanto por meio de qualquer coisa. Se alguém pudesse demonstrar para mim que todo o desenvolvimento da vida na Terra é, desde a primeira bactéria até nós hoje, um processo inteiramente explicável em termos científicos, nem por um momento eu concluiria que isso não foi o resultado dos propósitos criativos de Deus em ação.

Observe como é a sua cosmovisão cristã, mesmo com toda a bagagem científica: a crença em Deus como criador de todo o universo, Terra e vida, não é demérito à física. E toda o desenvolvimento físico que ele trabalhou, tanto como professor como pesquisador, não minou a sua fé e nem o tornou ateu. E mais do que isso: se fosse possível demonstrar toda a criação, nos seus mínimos detalhes, por processos puramente físicos (incluindo a emergência da vida, como ele destaca), isso em nada o afastaria de Deus. Ao contrário: isso seria quase que uma “evidência de fé” na prática.

Um outro trecho formidável é o da p. 125:

É preciso repetir continuamente que a teologia da criação não trata de como as coisas começaram, mas sim de por que elas existem. Descobertas científicas, claro, modificam o tom da discussão teológica. Há uma interação entre a teologia e a cultura geral, em que a ciência está incluída. Porém essa é mais uma questão de tom do discurso – penso – do que da própria teologia.

Isso é fundamental para um cristão: teologia da criação não fala sobre processos físicos da criação! É quase que elementar termos esses detalhes em mente, mas não são todos que param para pensar. Em outras palavras: o texto bíblico, que é a base da teologia da criação, não está escrito em um formato científico ou para responder nossas questões físicas / cosmológicas; aliás, nem tem essa pretensão. O texto sagrado é escrito dentro de um contexto muito antigo, é um documento também muito antigo e tem linguagem / gêneros literários que são próprios daquela comunidade naquela época. Polkinghorne, como uma pessoa altamente capacitada pelos estudos teológicos, tinha isso em mente.

Um outro detalhe nesse trecho é que as descobertas científicas modificam o discurso teológico. Veja, modificar o discurso teológico é completamente diferente de modificar a teologia ou a ortodoxia cristã. Se descobertas físicas mudassem a teologia, então o cristianismo nem existiria: só no séc. XX tivemos modificações tão profundas na forma de observar o universo que o simples fato de se observar uma galáxia já nos deixa desorientado em relação ao cosmo como um todo. Veja, por exemplo, uma citação que Alister McGrath faz do próprio Polkinghorne no livro A ciência de Deus: uma introdução à teologia científica, p. 74:

O argumento levantado por Polkinghorne é fundamental: parece haver algum tipo de “consonância” ou “harmonização” entre o ordenamento do mundo e a capacidade da mente humana de discerni-lo ou representá-lo.

Parafraseando Polkinghorne em uma outra citação que o McGrath faz no mesmo livro: Deus nos deu capacidade de raciocínio e consonância entre nossa mentalidade e a ordem do mundo natural a tal ponto que conseguimos entender e explicar o mundo físico. Só que isso não é algo humano: é dado pelo Criador. E, como o próprio Criador é Autor da natureza e da Palavra escrita revelada, não há contradição ou conflito: há um trabalho intenso e duro para o ser humano executar.

Sobre teorias de unificação dentro da física (teorias que buscam unificar, em apenas um só modelo, todas as explicações, equações e processos físicos de funcionamento, desde o macro cosmo à escala quântica), ele deixa uma palavra acalentadora, incluindo até uma possibilidade teológica, na p. 127:

Outro exemplo: sou simpático à busca por uma “grande teoria unificada”. Teologicamente, penso que deveríamos esperar sim. Se há um Criador, deve haver um grande plano para a criação.

Observe que, nesses trechos acima, o físico Polkinghorne não entra em contradição, conflito ou crise existencial com o pastor Polkinghorne: “Em meu ponto de vista, minha fé não ajudou nem atrapalhou minha física”, conta ele na p. 128 do mesmo livro. Ele via que Deus opera na natureza através de processos físicos que conhecemos através da física ou por qualquer outra forma que ainda não sabemos. Essa paciência frente ao desconhecido ou, até mesmo, frente ao conhecido e explicável, é surpreendente. Nem todos os cristãos, atualmente, tem essa tranquilidade de descansar em paz ou não ter dilemas profundos na alma com “conflitos” entre ciência e fé.

Em resumo, eram essas as poucas palavras que tinha para mencionar sobre esse grande físico e pastor. Apesar de não o ter conhecido pessoalmente, considerava o prof. Polkinghorne como alguém para se inspirar, principalmente na forma de pensar. Ainda tenho que estudar e ler muito sobre a sua obra, que é extensa e profunda.

Em todo o texto estou falando do prof. Polkinghorne no passado. É que no dia 09 de março de 2021 aprouve o Senhor recolhe-lo para a eternidade, depois de ter vivido por 90 anos. Viveu bastante, teve uma vida muito produtiva e, é claro, a morte de alguém como ele nunca é vista sem tristeza.

Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda.

2 Timóteo 4:8

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

John Polkinghorne recebendo o prêmio Templeton em 2002 das mãos do duque de Edimburgo (esposo e consorte da monarca britânica, rainha Elizabeth II).
Fonte: https://www.templetonprize.org/laureate/john-c-polkinghorne/
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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