As Origens: a ciência que discorda da Bíblia
Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor.
Isaías 55:8
Isaías 55:8
A coluna de hoje perpassará por uma reflexão sobre o papel da ciência moderna na leitura do texto bíblico, principalmente no que é concernente às origens, que é a série que estou desmembrando agora. Para melhor embasar os pontos que apresentarei, o livro é do John Walton, professor de Antigo Testamento (AT) no Wheaton College, The lost world of Genesis one, na proposição 1. Em vários trabalhos sobre o Antigo Oriente Próximo (AOP), Walton defende uma tese central e, para construí-la, coloca diversas proposições encadeadas e enumeradas até fechar o pensamento completo.
A definição que estou chamando de ciência moderna é a desenvolvida a partir do séc. XV e, mais precisamente, no séc. XVII com Galileu. É uma forma de desenvolver o conhecimento humano observando a natureza com várias metodologias, como experimentação, observação, matematização e tomada de dados por diversas formas. É claro que a ciência se desenvolveu muito de Galileu até nossos dias: Newton culminou todo o nosso conhecimento físico, por exemplo, naquilo que chamamos de mecânica clássica e deu base até para cosmovisões, como deísmo e mecanicismo. E isso perdura até o início do séc. XX, onde as bases da mecânica clássica são calçadas com a mecânica quântica e a cobertura é feita pela Relatividade e outras teorias de gravitação (como Teleparalelismo, que trabalhei durante minha pós-graduação).
Uma das formas de se interpretar as origens é olhar para o texto bíblico com os óculos da ciência moderna. Este tipo interpretativo é chamado de concordismo: você pode fazer uma teologização da ciência ou uma cientifização da teologia. Estes termos esquisitos, até onde saiba, não são encontrados em nenhum idioma, mas reflete muito bem as tentativas do concordismo.
O que chamo de teologização da ciência é uma forma de forçar a ciência moderna nos moldes da teologia cristã (claro que estou trabalhando dentro do meio onde estou inserido). Ou seja, olho para a ciência, para as suas descobertas e seu desenvolvimento atual e vejo as teorias teológicas (doutrinas cristãs, como soteriologia, doutrina cristã da criação etc) como tradução das teorias científicas. Exemplo do que é colocado como teologização da ciência: olho para o planeta Júpiter, grande e com muita massa dentro do sistema solar, e por causa disso sua capacidade de “puxar” asteroides é muito grande. Então, concluo que Júpiter faz um papel de irmão salvador espiritual da Terra, salvando-a de destruição permanente análogo ao que Cristo faz conosco de forma espiritual.
Já a cientifização da teologia é algo semelhante na essência do anterior, mas ao contrário: olho para o texto bíblico e retiro verdades científicas. Exemplo do que é colocado como cientifização da teologia: no verso 3 do capítulo 1 de Gênesis é uma alusão ao Big Bang.
São tantas coisas absurdas que eu poderia citar desse tal de concordismo (que pode ser em qualquer vertente ou em ambas ao mesmo tempo), mas deixarei que o próprio Walton, com sua expertise e didática nos ensine melhor. Na p. 15 ele contextualiza sobre a questão do que é o concordismo em termos de tradução literária bíblica e narrativa científica; ele não adentra em exemplos práticos como fiz, pois, seu intuito é mostrar a incompatibilidade entre a cosmologia antiga (a forma que o israelita do séc. XV a.C. pensava sobre o mundo) e a ciência moderna. E o ponto principal é que esse tipo de tradução é impossível: qual motivo de fazer isso para a ciência moderna e não para a ciência do séc. IX, X ou XII? A evolução da ciência é clara pela sua história e, o que temos de cosmologia hoje, por exemplo, talvez seja bem diferente da ciência cosmológica do séc. XXV (futuro). E como ficou / fica / ficará o concordismo bíblico? O primeiro problema que ele coloca é “If we accept Genesis 1 as ancient cosmology, then we need to interpret it as ancient cosmology rather than translate it into modern cosmology. If we try to turn it into modern cosmology, we are making the text say something that it never said. It is not just a case of adding meaning (as more information has become available) it is a case of changing meaning. Since we view the text as authoritative, it is a dangerous thing to change the meaning of the text into something it never intended to say”. Fazendo uma tradução livre,
Se aceitarmos Gênesis 1 como cosmologia antiga, então precisamos interpretá-lo como cosmologia antiga em vez de traduzi-lo para a cosmologia moderna. Se tentarmos transformá-lo em cosmologia moderna estaremos fazendo com que o texto diga algo que nunca quis dizer. Não se trata apenas de adicionar significado (à medida que mais informações se tornam disponíveis), é um caso de alterar o significado. Visto que vemos o texto como autoritário é perigoso mudar o significado do texto para algo que ele nunca teve a intenção de dizer.
Traduzindo para o bom português brasileiro: colocar significado extra no texto bíblico, além de ser um rasgo na exegese bíblica, é uma forma de modificar a autoridade e (vou além) transtornar a revelação especial. Tratar o texto sagrado como uma leitura literal (que isso não é o que ele quer dizer) ou colocar nossos pensamentos modernos da ciência atual é confrontar o que Deus quis Se revelar a nós.
Um outro problema que Walton coloca é, ainda na p. 15 do mesmo livro The lost world of Genesis one, é “Another problem with concordism is that it assumes that the text should be understood in reference to current scientific consensus, which would mean that it would neither correspond to last century’s scientific consensus nor to that which may develop in the next century. If God were intent on making his revelation correspond to science, we have to ask which science”. Fazendo uma tradução livre,
Outro problema com o concordismo é que ele assume que o texto deve ser entendido em referência ao consenso científico atual, o que significaria que não corresponderia ao consenso científico do século passado nem ao que pode se desenvolver no próximo século. Se Deus pretendia fazer sua revelação corresponder à ciência, temos que perguntar qual ciência.
Ou seja, ao invés de perguntarmos ao texto o que ele quer dizer dentro do seu rio cultural, agora devemos recorrer ao Espírito Santo para fazer interpretação textual! Isso soa quase que adivinhação: a ciência que devo fazer concordismo é a atual ou já adianto a interpretação da exegese para o concordismo do séc. XX? Sei que parece ser sarcasmo demais, mas é que não há outra forma de tratar isso.
Aliás, se pareço áspero demais, vamos voltar com o prof. Walton na p. 17 do mesmo livro: “Through the entire Bible, there is not a single instance in which God revealed to Israel a science beyond their own culture. No passage offers a scientific perspective that was not common to the Old World science of antiquity”. Em tradução livre,
Em toda a Bíblia, não há um único caso em que Deus revelou a Israel uma ciência além de sua própria cultura. Nenhuma passagem oferece uma perspectiva científica que não fosse comum à ciência da Antiguidade do Mundo Antigo.
Se nem Deus fez revelação nova na ciência, quem sou eu para fazer tal trabalho hoje em dia? Concordo que para ter o título de doutor em física, por exemplo, é difícil, mas te garanto, caro leitor, que isso está longe de ser uma autorização divina de reinterpretação bíblica à luz da ciência moderna.
Para finalizar com Walton, uma outra citação do livro, igualmente magnífico, é o The lost world of Scripture, na proposição 4: “Agreement on this point should lead to the inevitable next conclusion (though it often does not), that is, that there is no new scientific revelation in the Bible. By this we mean that no statements in the Bible offered the original audience new insight int how the material world regularly works or how the naturalistic cause-and-effect system operates. We need to affirm this both in terms of hermeneutical theory and in terms of what we actually find in the Bible”. Em tradução livre,
Sobre esse ponto isto nos leva a seguinte conclusão inevitável (embora muitas vezes não o faça) que é: não há nenhuma revelação nova científica na Bíblia. Com isso, queremos dizer que não há nenhuma declaração na Bíblia que ofereceu a audiência original nova compreensão de como o mundo material funciona regularmente ou como as questões de causa e efeito nos sistemas naturais operam. Precisamos afirmar isto tanto em termos de teoria hermenêutica quanto em termos do que realmente encontramos na Bíblia
Ou seja, não há concordância científica entre o texto bíblico e a ciência e, muito menos, concordância teológica entre a ciência e o texto bíblico. E mais: não há verdades ou novas revelações científicas no texto sagrado. A Bíblia deve ser lida como ela é: Palavra de Deus, inspirada (e não psicografada), inerrante (não em questões científicas, pois isso nem faz sentido) e é revelação especial do Deus Criador de todas as coisas.
E como devemos ler o texto bíblico? Aplicando as regras da exegese corretamente: lendo o texto dentro do seu contexto cultural, estudando o idioma original, as características do escritor e do destinatário originais, entendendo o mundo do AOP sem fazer tradução cultural ou “científica”. Depois de feito tudo isso, podemos fazer a hermenêutica (transcender o texto da época para uma aplicação atual) de forma saudável.
A coluna de hoje foi bastante curta, mas acredito que tem muitos detalhes a serem refletidos. Nessa série sobre As Origens é preciso deixar bastante claro cada ponto tanto do texto bíblico quanto da aplicação (ou da não aplicação) da ciência ao fazermos uma correta exegese.
Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos.
Isaías 55:9
Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.
Sugestão de leitura
- Estou fazendo uma série de estudos, curtos de 15 min cada, no Instagram da igreja ElShaddai, sobre a temática criação do mundo. O foco é muito simples, apenas no texto bíblico, e o público são pessoas da igreja que não tem grandes conhecimentos sobre literatura bíblica ou do AOP. A série, que ainda é atualizada, está toda nos stories https://www.instagram.com/stories/highlights/17870473496498645/;
- Dissertação A “influência do mito babilônico da criação, Enuma Elish, em Gênesis 1,1 – 2,4a, por Antonio Ivemar da Silva Pontes. Link: http://tede2.unicap.br:8080/handle/tede/886;
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- A ciência de Deus: uma introdução à teologia científica, por Alister McGrath, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- The lost world of Scripture: ancient literary culture and biblical authority, por John Walton e D. Brent Sandy, editora InterVarsity Press;
- The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, por John Walton, editora InterVasity Press. A série completa, The Lost World Series, pode ser vista no site https://www.ivpress.com/the-lost-world-series;
- O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III e John Walton com contribuição de Stephen Moshier, editora Thomas Nelson Brasil;
- O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Como Ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova;
- Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por Andre Daniel Reinke, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com o BT Books. Livro simplesmente essencial para o entendimento, de forma panorâmica, dos povos do AOP;
- Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, por John Walton, Victor Mathews e Mark Chavalas, editora Atos;
- Biblia Hebraica Stuttgartensia 5ª ed: este é o texto, com aparato crítico (comentários sobre a composição, a partir dos manuscritos mais perto dos originais), do AT;
- Torá: a lei de Moisés, edição bilíngue (hebraico e português), editora Sefer: este livro contém todo o Pentateuco, comentários e explicações (em rodapé), além de outros textos judaicos (como poemas e músicas).