Entendendo a criação através da Mecânica Clássica: Dinâmica

Este mui belo sistema de Sol, planetas e cometas só poderia provir do desígnio e domínio de um Ser inteligente e poderoso. E se as estrelas fixas forem centros de sistemas semelhantes, todos eles foram formados segundo um desígnio semelhante e sujeitos ao domínio desse Ser, especialmente porque a luz das estrelas fixas é da mesma natureza da luz solar e todos os sistemas enviam luz uns aos outros. E para evitar que os sistemas de estrelas fixas, pela gravitação, caíssem uns sobre os outros, Ele colocou-os a imensas distâncias uns dos outros.

Princípios matemáticos da filosofia natural. 2ª edição, editora Fundação Calouste Gulbenkian, p. 883

A coluna de hoje continuará o assunto da anterior sobre Mecânica clássica. Na anterior falei um pouco sobre a divisão da física ou mecânica clássica e tratei especificamente da cinemática. Um outro detalhe que não destaquei é que a Mecânica Clássica tem várias divisões: mecânica newtoniana, mecânica lagrangeana e mecânica hamiltoniana. Essas divisões são puramente matemáticas ou formalismos matemáticos: são outras formas de tratar os mesmos fenômenos físicos da mecânica clássica com intuito de facilitar as contas; não trataremos desses formalismos matemáticos. O que nos interessa aqui é a cinemática, que tratei no artigo anterior, e da dinâmica, assunto desse texto.

A cinemática, de forma bem geral, é a ideia de entender como os corpos (qualquer objeto que não importa o seu tamanho) se movimentam sem saber a origem dos seus movimentos. Ou seja, quando estou descrevendo o movimento de um carro na rua ou de um foguete em direção à Marte, não me importo com o quê causou o movimento (combustível do carro ou do foguete): apenas a trajetória, a viagem do carro / foguete. Já na dinâmica, a origem ou a causa do movimento é essencial.

A origem dos movimentos, dentro da mecânica clássica, vem das forças que atuam sobre os corpos (corpo: qualquer tipo de objeto que utilizo como referencial, como pessoa, carro, navio, partícula, Terra ou galáxia). Em linhas gerais, defino o que será o referencial, o corpo nesse referencial, um sistema de coordenadas para orientação e observo quem atua sobre o corpo externamente, ou seja, fora do sistema que monto. Por exemplo, ao pegar uma caneta com a mão, defino a caneta como um corpo, um referencial e a minha mão exerce sobre a caneta uma força: força externa ao sistema caneta.

Isso tudo parece muito simples (e é!), é o nosso dia a dia e já é sistematizado como conhecimento há quase 350 anos. Em 8 de maio de 1686 Isaac Newton finaliza, em latim, a 1ª edição do livro Philosophiae naturalis principia mathematica ou, como no nosso bom português, Princípios matemáticos da filosofia natural. Nesta obra, o grande físico, matemático, cristão e fundador da física e mecânica clássica, Newton sintetiza o conhecimento do movimento (com ou sem velocidade, com ou sem aceleração) dos corpos. Abaixo uma pequena citação da 1ª edição desta obra (nas referências há um link para baixar o livro, em português, gratuitamente):333

Mas, estando confrontados com a filosofia natural mais do que com as artes manuais, e escrevendo a respeito das potências da natureza mais do que a respeito das potências manuais, vamos concentrar-nos nos aspectos da gravidade, leveza, forças elásticas, resistência dos fluídos e forças desta sorte, atractívas ou impulsivas. E por isso o nosso presente trabalho expõe os princípios matemáticos da filosofia natural. Porque o problema básico da filosofia parece ser descobrir as forças da natureza a partir dos fenómenos dos movimentos e depois demonstrar os outros fenómenos a partir destas forças.

Princípios matemáticos da filosofia natural, p. 8 e 9

Um pouco mais a frente há uma outra citação que, para mim, é a unificação das “leis do céu” com as “leis da Terra”:

Então, os movimentos dos planetas, dos cometas, da Lua e do mar são deduzidos dessas forças por proposições que são igualmente matemáticas.

Princípios matemáticos da filosofia natural, p.9

Nessa coluna não tratarei de todas as leis desenvolvidas por Newton: as conhecidas 3 Leis e a Lei da Gravitação Universal. Mas, tratarei de algumas definições essenciais para entende-las.

REFERENCIAL INERCIAL

Aqui e na coluna anterior já tratei sobre o que é referencial. Mas, vamos dar um passo a diante: podemos definir referencial inercial como sendo um corpo que não tem forças externas atuando sobre ele. Com isso, a sua aceleração é zero. Agora, vamos mais devagar.

Quando não há forças externas atuando sobre um corpo isso quer dizer que não há nada, em absoluto físico, interação entre o corpo e qualquer outra coisa. Por exemplo, nós que moramos na Terra estamos constantemente sendo influenciados, no sentido físico, pela gravidade da Terra: levante uma caneta a uma altura de 1 m e solte-a; ela cairá, em direção ao chão, porque a gravidade (uma força) da Terra puxa a caneta. Então, quando não há forças externas agindo a aceleração do corpo é zero. Com isso podemos deduzir que a velocidade deste corpo, sem ação de forças externas, sempre será constante a um valor ou zero (que também é um valor constante).

Só que isso é extremamente complicado de se conseguir no mundo real. Todos os corpos, na superfície terrestre, estão sob a ação da aceleração gravitacional ou, melhor colocando, da força gravitacional. Por outro lado, pelo menos localmente, podemos “desprezar” este fator para melhor entendermos alguns fenômenos. Ou, como é o correto de se fazer principalmente com o uso das leis de Newton, incorporar a força gravitacional nas contas. Além de tudo isso, ainda temos que considerar a resistência do ar, as forças de atrito etc: tudo isso é “minimizado” e sintetizado com intuito de montar um referencial inercial.

Vamos “arredondar” as contas. Um avião voando a uma velocidade constante, o chão, um carro andando em uma rua com velocidade constante, uma pessoa parada em relação ao chão e a própria Terra (por ela mesma) podemos considerar como referenciais inerciais em uma primeira aproximação. Isso significa que as contas que fazemos, os estudos de movimento e as observações em baixas velocidades (qualquer velocidade abaixo de 10% da velocidade da luz, que é de 300 mil km/s) consideram os corpos (depois de analisado quem atua em quê) como referenciais inerciais.

Observe que não é porque um corpo que sofra força externa não é considerado um referencial externo. Podemos considera-los como referenciais inerciais em relação à essas forças e, com o devido tratamento físico e matemático, podemos “simplificar” ou “retirar” essas forças externas. Por exemplo, um carro andando a velocidade constante em uma rua pode ser considerado um referencial inercial mesmo que ele sofra a ação gravitacional da Terra que o puxe para baixo (para o centro da Terra), sofra com as forças de atrito entre os pneus e o asfalto, e sofra com a resistência do ar. Mas estas forças consigo quantificar, separar e ver as atuações.

Há diversos experimentos podemos fazer para testar esses referenciais inerciais. Por exemplo, pegue uma bandeja e coloque um objeto oval, como uma maça ou uma laranja. Deixe o objeto parado em relação à bandeja. Agora, puxe a bandeja com uma velocidade muito rápida. O que acontece é que o objeto começa a rolar: ele não acompanha a bandeja porque ele está parado em relação a ela (velocidade inicial constante = 0). Se você estiver em um carro em velocidade constante pode fazer o mesmo experimento e o resultado será igual.

MASSA

Um dos conceitos fundamentais na mecânica clássica é o de massa. Newton definiu massa como sendo uma quantidade de matéria que tem um volume e uma densidade. É até meio redundante, mas isso é séc. XVII: não havia os conceitos de átomo ou as coisas que temos em física de partículas hoje. Melhor definindo, na linguagem da época de Newton, massa é uma propriedade intrínseca dos corpos. Veremos, na próxima coluna, que a massa é a constante de proporcionalidade da Segunda Lei de Newton (a famosa F = m.a) e a responsável pela inércia da Primeira Lei.

No SI, Sistema Internacional de Unidades e Medidas, o kilograma era definido, até 2018, como sendo a quantidade de matéria igual ou análogo a um objeto-padrão que está em Sèrves, França. Este objeto é um cilindro com altura e diâmetro de 39 mm feito de 90% de platina e 10% de irídio. Em 2019 o Bureau International des Poids et Mesures (BIPM) redefiniu o padrão de massa como derivado da constante de Planck. Em linhas gerais, 1 kg continua sendo 1 kg como sempre e nada mudou; o que mudou foi a precisão, em ordem atômica, de se medir a massa de um objeto qualquer. Ou seja, temos a capacidade tecnológica e científica de medir a massa de um objeto até as suas partículas.

TEMPO

O livro Principae, como é conhecido a obra escrita por Newton, é denso e difícil de se acompanhar. Não é um livro de literatura, como uma gostosa leitura de Anna Kariênina de Tostoi ou Ressurreição de Machado de Assis. Ao contrário: a edição que possuo em mãos (estará o link na descrição para download gratuito nas referências), em português, pode ser difícil e maçante. O motivo é que nessa época, segunda metade do séc. XVII, não era comum a escrita de textos com muitas equações matemáticas e tudo era feito por geometria plana. Só para se ter uma ideia, a construção de vetores é uma “invenção” matemática e amplamente divulgada apenas no séc. XX! Tente fazer qualquer cálculo sem uma estrutura matemática como matrizes ou vetores; é extremamente difícil.

Mesmo assim, Newton fez interessantes definições como tempo. Até hoje, fisicamente falando, não há uma definição exata de tempo. Newton define-o com algo “absoluto, verdadeiro e matemático, de si e por sua própria natureza flui igualmente, sem relação a qualquer coisa de externo, e, por outro nome, chama-se duração” (p. 28 do livro Princípios matemáticos da filosofia natural. 2ª edição, editora Fundação Calouste Gulbenkian). Isso para mim é completamente incompreensível, óbvio: tenho uma mentalidade de um físico teórico que busca a estrutura fundamental da realidade física. Mas, para você, isso seja completamente claro e plausível. Vamos ver alguns detalhes, pela ótica de Newton, dessa definição de tempo.

Começando com o absoluto. Para Newton, o tempo é um ente único, algo onde tudo e todos estão imersos. Isso vale para mim, para você (seja lá onde você esteja lendo este texto), para o marciano em Marte, para o alien que está morando na galáxia de Andrômeda ou para qualquer outra pessoa (ou alien) em qualquer lugar do universo. Tempo é algo absoluto, funciona de forma igual para qualquer pessoa ou coisa em qualquer lugar do universo. E mais: para saber como esse tempo “toca” ou flui, basta ver a duração ou, melhor dizendo, o relógio que esse alguém ou alguma coisa em qualquer lugar do universo está usando.

Isso é completamente contrário à Relatividade ou, melhor dizendo, a Relatividade mudou substancialmente essa ideia de tempo absoluto. Por outro lado, ganhamos em entendimento: a Relatividade, mesmo contra intuitiva, funciona: mesmo tomando uma ideia mais utilitarista ou funcional das coisas, GPS e toda a nossa vida funciona com a Relatividade. Aliás, toda ela funciona em nível tecnológico e de precisão: não usamos Relatividade para andar de carro ou fazer uma corrida no parque.

ESPAÇO

Outro conceito extremamente natural é fácil de compreender, pela ótica de Newton, é de espaço: ele é “absoluto, de sua própria natureza sem relação com qualquer coisa de externo, permanece sempre semelhante e imóvel”. E mais do que isso: Newton coloca o espaço como sendo absoluto, semelhante e imóvel a tudo, seja na Terra ou em qualquer parte do universo.

Espaço, em outras palavras, é o palco onde as coisas acontecem. Por ser absoluto e imutável, a Relatividade acabou modificando-o. Ou seja, tanto o tempo quanto o espaço, para Newton absolutos, na Relatividade eles dependem do movimento do observador.

MOVIMENTO

Dado que o tempo e o espaço são absolutos na mecânica newtoniana, o movimento também será absoluto. E movimento absoluto não significa, apenas, de movimento no sentido de ter velocidade: o “movimento” parado é o chamado de repouso e este também é absoluto. Parece que estou dizendo apenas obviedades: em um primeiro momento, sim, dado que essa mentalidade do séc. XVII é a raiz do nosso senso comum moderno. Por outro lado, falar de algo que está parado ou em movimento, de forma absoluta, é impensável fisicamente falando por causa dos referenciais (algo está parado ou em movimento sempre em relação a algo).

Só que aqui em Newton o movimento pode ser absoluto em relação ao espaço absoluto quando medido em um tempo absoluto onde não importa os referenciais. Claro, temos as coisas relativas: tempo relativo a outro, espaço (ou distância) relativo a outro e, consequentemente, movimento (parado também entra na conta) relativo a algum outro referencial. Mas, e é aqui o cerne da questão, tudo está relacionado ao absoluto: espaço, tempo e movimento. Em outras palavras: mesmo que você tenha uma relatividade (um pouco antes de Newton se chamava relatividade de Galileu) entre os referenciais todo mundo está dentro de um universo imutável e absoluto.

CONCLUSÃO

Temos muita coisa para refletir nesses tópicos, apesar de serem muito “óbvio”. Afinal, estou descrevendo como é o nosso mundo do dia a dia, o mundo clássico, o mundo a mecânica clássica, o mundo da mecânica newtoniana. Sendo até mais extremista, não “precisamos” de mecânica quântica e nem de Relatividade de Einstein para enviar robôs à Marte, sondas aos confins do Sistema Solar, como as Vikings I e II ou até mesmo viajarmos (nós, humanos) à Lua.

E avançando ainda mais, é exatamente assim que o texto bíblico trata o universo: absoluto, imutável, fixo, com espaço / tempo / massa / movimentos como entidades físicas reais e fixas. O que muda é só uma perspectiva astronômica: até João, em Apocalipse, havia uma forte noção de que a Terra era plana (a do passado; a de hoje é besteirol de mentalidades infantis ou, no máximo, ignorantes no sentido de falta de conhecimento), centro do universo e tudo rotacionando-a. Mas isso não muda, de forma substancial, essa mecânica newtoniana clássica.

Outro detalhe a ser destacado neste final é que Newton, “à seu modo”, é um cristão. Ele era de uma linha, digamos, mais deísta (com D mesmo). Isso significa que ele acreditava que Deus criou todas as coisas, colocou tudo em seu lugar, colocou as leis e deixou tudo funcionando sem precisar da intervenção do Criador. Ou seja, Deus cria tudo e coloca tudo pra funcionar e tudo está funcionando sem a atuação direta dEle. Apenas um adendo: nós, cristãos ortodoxos, somos teístas (com T): Deus é o Criador de tudo, inclusive das leis, ajustou tudo no início, colocou tudo para funcionar E intervém na natureza da forma que Ele quer. Acredito eu que o caminho de interação física da intervenção perpassa pelas leis ou fenômenos físicos que Ele mesmo criou.

Ah, uma última curiosidade sobre Newton: historicamente, ele estudo, talvez, mais teologia do que física! Apesar de ser um dos pais da matemática moderna (Cálculo: limite, derivada e integral) e um dos pais de toda a física (mecânica clássica, ótica etc), ele escreveu muito texto de cunho hermenêutico (por exemplo, comentários ao livro de Daniel e Apocalipse).

A epígrafe final é um pouquinho grande, mas é um perfeito resumo da obra de Newton. Aliás, esse texto foi retirado do próprio Principae e foi escrito por ele mesmo. O parágrafo é único, mas dividi em partes para facilitar a leitura. Por último, observe como Newton destaca ou diferencia Deus de deus e como ele descreve Deus em sua transcendência.

Este Ser governa todas as coisas, não como alma do Universo, mas como Senhor de tudo. E por causa deste domínio tem de ser chamado Senhor Deus Pantokrátor ou Governador Universal. Porque Deus é palavra relativa e referida a servos. Deidade é o domínio de Deus, não sobre o Seu próprio corpo, como imaginam os que considerem Deus como alma do Universo, mas sobre os servos. O supremo Deus é Ser eterno, infinito e absolutamente perfeito. Ora um ser, por perfeito que seja, se não tiver domínio, não é o Senhor Deus. Nós dizemos: o meu Deus, o nosso Deus, o Deus de Israel, o Deus dos Deuses, o Senhor dos Senhores. E não dizemos: o meu único, o nosso único eterno, o único eterno de Israel, o único eterno dos deuses; não dizemos o meu infinito, ou o meu único perfeito. Estas designações [eterno, infinito, perfeito] não têm que ver com os servos.

A palavra “deus” é usada, em geral, para significar “senhor”, mas nem todo o senhor é um deus. É o domínio de um ser espiritual que constitui um deus; um domínio verdadeiro constitui um verdadeiro deus, um domínio supremo constitui um supremo deus um domínio imaginário constitui um imaginário deus. Deste verdadeiro domínio segue-se que o verdadeiro Deus é um Ser Vivo, Inteligente e Poderoso e das suas outras perfeições, que ele é supremo, ou supremamente perfeito. Ele é eterno e infinito, omnipotente e omnisciente, isto é, perdura de eternidade a eternidade, a sua presença do infinito ao infinito; governa todas as coisas e conhece tudo quanto existe ou possa existir. Ele não é a eternidade e a infinitude, mas é eterno e infinito; não é a duração e o espaço mas dura e está presente. Dura para sempre e está presente em toda a parte e, existindo sempre e em toda a parte, constitui a duração e o espaço. Como cada partícula do espaço existe sempre e cada momento indivisível ou duração está em toda a parte, por certo que o fazedor e senhor de todas as coisas não pode ser um nunca nem um nenhures.

Princípios matemáticos da filosofia natural. 2ª edição, editora Fundação Calouste Gulbenkian, p. 883

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Sugestão de leitura

Estrela Earendel, a mais distante já observada pelo Telescópio Espacial Hubble. A luz viajou por 12,9 bilhões de anos (redshift de 6,2).
Fonte: http://www.sci-news.com/astronomy/earendel-10669.html
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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