Dilúvio: história ou ficção?
E as águas prevaleceram excessivamente sobre a terra; e todos os altos montes que havia debaixo de todo o céu, foram cobertos.
Gênesis 7:19
Hoje quero continuar a navegação, sem afundar, nas águas do dilúvio e partindo de uma ancora que foi colocada no artigo anterior. A ideia, que já deixei estabilizada nesse texto, é de mito, que não é uma história inventada, mas é uma narrativa para dar sentido à realidade.
Outro ponto que destaquei é que o texto bíblico não tem a intenção primária de narrar ou contar, simplesmente, uma história com todos os detalhes. Melhor: o texto bíblico sobre o dilúvio não tem a intenção de narrar a história do jeito que quero saber, com os detalhes técnicos, geofísicos e minuciosos de como uma arca retangular, com 3 andares, conseguiu navegabilidade sendo que estava cheia de animais e, depois, os animais foram entregues em suas terras (o tradicional canguru da Austrália).
Ao contrário: o texto bíblico é inspirado por Deus com um propósito especifico e direto. Se eu, leitor brasileiro, ocidental do séc. XXI, vou conseguir sanar minhas curiosidades, é outra história. O fato é que o texto, com essa preparação e planejamento divino, tem que ser lido a partir de uma interpretação literário-teológica, pois foi assim e com essa motivação que ele foi escrito.
John Walton é um pesquisador de AOP (Antigo Oriente Próximo) e, até onde eu saiba, desde o fim da década de 1980, tem publicado trabalhos sobre literatura dessa região. Além disso, ele é um “mero” professor de seminário teológico, de Antigo Testamento. Ou seja, primariamente, Walton investiga o que o texto de Gênesis (Gn) quer falar. Por exemplo, ele destaca no livro O mundo perdido do dilúvio (descrição completa na sessão de Sugestão de leituras):
Indo nessa linha que Walton propõe, o primeiro passo é ver a literatura de Gn. Tomando a partir dos capítulos 12 em diante, é facilmente observado que essa parte de Gn é diferente, em termos descritivos: o cap. 12 começa com história de Israel, propriamente dita, com foco a partir de Abraão e seus descendentes. Gn 1 a 11, se formos considerar o mesmo estilo, seria uma narrativa “histórica” do antecedente de Israel. Só que esse encaixe textual não serve. O próprio Walton menciona que “É comum que o trecho de Gênesis 1 – 11 seja chamado de poesia, parábola ou até mesmo mito”.
Por outro lado, a história de Adão tem um paralelo interessante com Israel. Peter Enns, em um artigo https://biologos.org/articles/adam-is-israel escrito em 2010 (em inglês) coloca Adão como o começo de Israel, não da humanidade. Mesmo levando isso em conta, não nos ajuda a entender se o texto do dilúvio é uma narrativa histórica porque ele está “há alguns séculos” depois do texto de Adão.
Um outro caminho, talvez o mais natural para a questão se o trecho de Gn 1 – 11, que engloba o dilúvio é ou não uma narrativa histórica, é ver qual é o gênero do trecho. Já vimos na coluna anterior que o texto tem formato poético e, principalmente os primeiros 4 capítulos, uma narrativa mítica. Vou seguir, novamente, o caminho que John Walton e Tremper Longman III, o outro autor do livro O mundo perdido do dilúvio, seguiram. Há um outro artigo do Tremper Longman III, em inglês, que tem algumas pistas do que colocarei.
Para entender se o dilúvio tem algum componente de historicidade, é necessário olharmos para o contexto, Gn 1 – 11, e a relação de tudo isso com o resto de Gn, dos capítulos 12 a 50. Começando com os toledots (estou usando o plural de toledot como se fosse escrito em português): em uma tradução livre do hebraico, seria algo como este é o registro de fulano. O fulano é o nome pessoal, não significando necessariamente que seja uma pessoa exata, mas que pode ser a geração ou a família. Por exemplo, este é o registro dos Fernandes: isso indica que pode ser a escrita dos meus descendentes diretos ou da minha família, futura, que tem o sobrenome Fernandes e que não necessariamente são todos meus descendentes genéticos. Como Longman III e Walton colocam, os toledots são muito usados em outros trechos de Gn. Mas, devido a questão de que os toledots não são, necessariamente, descrições genéticas sequenciais, há um fundo de historicidade em Gn 1 – 11, não de forma literal, ao pé da letra.
Em outras palavras, a colocação de toledot em Gn, principalmente no trecho onde está inserido o dilúvio, remete a ideia de que o escritor estava colocando ou estava se apoiando em algum relato histórico. Devemos ter e mente e nunca esquecer que o escritor de Gn estava em sua época e, obviamente, pesquisando em algum registro ou documento, mesmo que esses registros, como parece ser, fossem de tradição oral. Sem contar que o texto que temos em mãos hoje, “original”, não é o original de Moisés. Além disso, o texto que Moisés escreveu ainda passou por edição final, mais ou menos no séc. IV a.C., depois da volta dos judeus do cativeiro babilônico (Esdras, Neemias, Zorobabel etc). Em resumo: o texto em hebraico que temos em mãos do dilúvio, especificamente, é o texto inspirado por Deus, mas que depois que saiu das mãos de Moisés passou por modificações literárias.
Veja que a coisa é bastante complicada do ponto de vista de literatura. Para completar o contexto da historicidade de Gn 1 – 11, Walton e Longman III: “So, as I read Genesis 1-11, including the Flood Story, I believe the “genre signals” are telling us that these stories (creation, Fall, Flood, Tower of Babel) refer in some way to real events that happened in the past” ou, fazendo uma tradução livre:
A parte em negrito é o destaque que queria chamar a sua atenção. Veja que Walton e Longman III, que são pesquisadores e professores de seminário teológico, especialistas em Antigo Testamento e que leem no original fluentemente (desconfio até que eles leem em escrita cuneiforme diretamente), acreditam a história do dilúvio (de forma especifica para nós) tem algum embasamento histórico. Essa ideia de embasamento histórico, ou seja, algo que inspirou o escritor de Gn a escrever o que escreveu e da forma que escreveu sobre o dilúvio é o que estamos buscando nessa série sobre o dilúvio.
Um último ponto que queria destacar é justamente essa ideia de “fato histórico”, “aconteceu”, “evento histórico”. Já tinha trabalhado isso na coluna anterior, mas gostaria de reforçar.
Walton já vai direto no ponto. Em suas palavras:
Vamos mais devagar. O que Walton está dizendo, em outras palavras, é que no mundo antigo a ideia de fato histórico, acontecimento, descrição histórica não é como entendemos hoje. Ou seja, quando narramos um evento histórico, primariamente, estamos descrevendo os eventos.
Por exemplo, vamos falar de chuva. Neste momento está chovendo e eu vou te descrever o que é o fato histórico chovendo agora. O que está acontecendo é que há gotículas de água estão caindo do céu a uma altura aproximada de 8 a 10 km. Isso acontece porque há condensação de vapor de água devido a ligações com poeira suspensa no ar. Depois que essa mistura de vapor de água e poeira atinge uma determinada altura, há uma diferença de pressão entre a superfície terrestre e essa altura máxima. Lá, nessa altura, ocorre a condensação e a água começa a sair do estado físico vapor, em uma transição de fase, para o estado físico líquido. Como a água líquida é mais densa que o ar, ocorre a queda.
O que acabei de fazer anteriormente é uma descrição do evento chuva. Essa descrição é pautada em um ambiente ocidental, séc. XXI, mentalidade científica e puramente descritiva. Veja que em momento algum invoquei ação metafísica (transcendente, qualquer coisa que não seja o mundo físico) ou mencionei Deus. Por outro lado, veja o que o profeta Zacarias diz:
Chuva serôdia significa chuva tardia, ou seja, chuva após o período “normal” de chuvas.
Veja que o texto bíblico está diametralmente oposto a minha explicação de chuva. Para Zacarias (e todo o mundo antigo) a chuva era feita e mandada por Deus. E agora, quem está certo: eu, com todo o meu aparato científico e comprovadamente certo, ou o texto bíblico, algo escrito há mais de 2.400 anos em um idioma que não existe mais, em uma cultura que não está disponível atualmente e uma forma de pensar nada científica?
A resposta é simples: os dois! A diferença está na forma de ver os acontecimentos. E aí é que entra (por minha conta e risco) a forma mítica de se “descrever os eventos”. Em outras palavras, o mundo antigo descrevia os eventos através de aspectos metafísicos.
Mas Moisés descrever o dilúvio sob a ótica metafísica está errado? Não seria correto descrever o evento dilúvio de forma científica? A contra pergunta: por quê ele faria isso, sendo que ninguém em seu tempo fazia isto?
Veja que as duas perguntas são equivalentes a resposta não é porque o texto é Palavra de Deus. Ou seja, não é porque a Bíblia é Palavra de Deus que ela deve estar 100% ajustada com a nossa forma de ler (literal, científica, descritiva etc). Não: justamente por ser Palavra de Deus é que ela é ajustada ao tempo do escritor e do destinatário original.
Há uma frase em inglês do Walton que sintetiza muito bem essa expressão da Bíblia não ser destinada a nós: “the Bible is written for us, but not to us”. Em tradução livre seria: “a Bíblia foi escrita para nós, mas não foi destinada a nós”. De forma direta, como documento, a Bíblia não é destinada originalmente a nós, porque há um destinatário especifico, em uma época especifica e tanto o escritor quanto o leitor original tem uma cultura própria e especifica que é completamente diferente de nós e de qualquer leitor que não é este original. Por outro lado, a Bíblia é Palavra de Deus e ela transcende ao tempo e as culturas. Nesse quesito, ela também foi escrita para nós numa perspectiva hermenêutica (de aplicação), e não para “relatar um fato histórico”. Afinal, nós sabermos sobre um determinado evento histórico como dilúvio, por exemplo, não acrescenta, em termos teológicos a nossa salvação (claro que há eventos históricos que são basilares, como ressurreição de Cristo).
Voltando a pergunta do motivo de Moisés não ter escrito o relato do dilúvio na forma científica ou descritiva, é porque na época dele não se tinha essa forma de pensar como se tem hoje. Outro clássico exemplo é o relato de Tróia por Homero: ele está descrito em forma mito-poética com intenção metafísica.
Finalizarei por aqui para você refletir um pouco mais nessas ideias. Sugiro fortemente que você leia as sugestões de leitura e as referências que cito em link no texto. Teremos muito trabalho pela frente. Espero que você não naufrague nessa série.
Quinze côvados acima prevaleceram as águas; e os montes foram cobertos.
Gênesis 7:20
Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.
Sugestão de leitura
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Os textos do BioLogos são excelentes, mas estão em inglês. Você pode lê-los com auxílio de um tradutor ou só com um dicionário, pois a linguagem está bem acessível. Os links dos artigos do BioLogos que utilizei são “Adam is Israel” e “Genesis and the Flood: understanding the biblical story”;
- Um dos livros que utilizarei, praticamente como base, é o O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III, John H. Walton e com contribuição de Stephen O. Moshier, editora Thomas Nelson Brasil. Também utilizei o mesmo livro, mas na edição em inglês: The lost world of the flood: mythology, theology, and the deluge debate por Tremper Longman III & John Walton with a contribuition by Stephen Moshier, editora IVP Academic.