As origens do homem: o dia seis da criação
E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.
Gênesis 2:7
A coluna de hoje é uma continuação da série As Origens do Homem . O ponto focal será o dia seis da criação. Mais especificamente, o texto de hoje é um complemento à última coluna onde trabalhei os 5 primeiros dias da criação com base na proposição 3 do livro O mundo perdido de Adão e Eva. O cerne dessa proposição é que as coisas criadas ao longo da semana da criação têm um sentido funcional e não material. Ou seja, o relato de Gn 1 não trabalha com a ideia de criação de objetos ou ciência antiga: a ideia é que cada dia está sendo dedicado a dar função ou sentido análogo ao que fazemos em uma construção que, inicialmente, chamamos de casa e, posteriormente, chamamos de lar. O dia 6, onde está a inserção da criação do homem, tem a mesma ideia: não é relatar a criação material do homem do barro, mas a sua função dentro da criação.
Talvez essa temática literária bíblica seja nova para você, então, irei por partes. Tomando a subseção da proposição 3 que o Walton trabalha essa temática, dividi-la-ei em: a ideia da palavra asâ (Gn 1:25), espécie e nomeação, imago Dei e finalizarei com a tradicional analogia da casa-lar.
ASÂ
Essa palavra do hebraico (estou transliterando assim para facilitar a digitação; leia no livro para ver a transliteração exata), como já mencionei em outras diversas colunas, não tem o sentido de criação de algo material ou de algum tipo de processo físico-químico divino oculto. O sentido da palavra asâ é algo modelar, algo que é modificado em sua significação, dar sentido a um objeto.
Uma forma mais fácil de observamos essa palavra em português é que, geralmente, as Bíblias traduze-a como fez, fazer diferente da palavra bara que é traduzida como criou, criar. Então, vamos seguir essa mesma linha, em português: bara é o criar, asâ é o fazer. As duas palavras têm sentido semelhante, mas aplicações diferentes no texto bíblico. Asâ terá o sentido de pegar algo, modificar esse algo para que ele tenha tal função. Um exemplo muito simples: um pedaço de ferro. Para mim, ele não tem serventia (o que eu posso fazer com um pedaço de ferro?). Então farei (asâ) uma faca com esse pedaço de ferro: vou polir, aquecê-lo, amolá-lo e, finalmente, terei uma bela faca. Veja a sequência: de um pedaço de ferro (algo material já existente) faço (asâ) uma faca (material que também existe). Ou seja, eu não criei algo do nada, apenas fiz uma modificação no sentido original daquele pedaço de ferro que, inicialmente, não tinha função, mas agora tem: cortar comida.
A ideia de asâ em Gn é semelhante: pegar algo que já existe e dar sentido. Por exemplo, no dia 6 da criação Deus ordenou que a terra produzisse animais terrestres. É óbvio, que em um sentido científico, não existe processo biológico de produção de animais a partir de terra (teoria da evolução não entra aqui!). Ou seja, o sentido do texto de Gn 1:24, 25 é autoexplicativo: a terra é o local onde os animais terrestres habitam e a sua função (da terra) é dar produção / sustento a eles.
ESPÉCIE E NOMEAÇÃO
Na coluna anterior dessa série mencionei, em um parágrafo, a questão da palavra espécie que não tem qualquer relação com o termo moderno utilizado em biologia. O exemplo que citei, Homo sapiens, é de um animal (nós) da espécie sapiens e do gênero Homo (pois há diversas outras espécies desse mesmo gênero que não são “seres humanos” ou da espécie sapiens).
Além desse importante ponto (espécie) outro detalhe que nos salta aos olhos é a questão de nomeação dos animais: veja em Gn 2:20 onde diz que “E o homem deu nomes a todo quadrúpede e ave dos céus e a todo animal do campo e para ele (o homem) não achou uma companheira frente a ele”. Observe que em toda a Bíblia a ação de nomear ou dar nome sempre está associado com a ideia de criação no sentido de função. Veja os clássicos exemplos da nomeação de pessoas (Jesus, Samuel, mudança de nome de Jacó para Israel etc) ou em Gn 2. É claro que nomear ou dar nomes não significa criação material e sim, a função ou o significado que esse nome implica ao objeto / pessoa.
Talvez a referência de Gn 2:20 te chame a atenção e você pode dizer que esse verso não faz parte do sexto dia da criação. Mas, como veremos na próxima coluna dessa série o sexto dia da criação é bem mais amplo: começa com a ordenança (nomeação) de Deus para que a terra produzisse seres terrestres e vai até Gn 2:24. Além de Walton, outro autor com visão cristã sobre criação diferente e que apoia essa interpretação é Hugh Ross. Você poderá ler mais sobre esse detalhe no livro A origem: quatro visões cristãs sobre criação, evolução e design inteligente, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, edição de 2019, págs. 101 e 102.
IMAGO DEI
O famoso termo latim que significa imagem de Deus é, na minha opinião, um dos pontos mais difíceis de se entender no diálogo entre ciência e literatura bíblica. A minha dificuldade está em entender o “objeto” imagem de Deus em nós. Isso é inteligência, racionalidade, alma, raciocínio, consciência e/ou alguma outra coisa? E a dificuldade maior que vejo é que o texto bíblico pode até ser mais simples nessa questão, como veremos abaixo, mas o escritor original tinha uma ideia de diferenciação do homem em relação aos outros animais e, além de tudo isso, Deus revelou a ele essa característica (imagem). Para o escritor original há uma clara interpretação na sua época, mas com uma profundidade um pouco maior: talvez ele não tivesse intenção de transmitir essa sensação, mas Deus encerrou essa intenção e colocou o Seu objetivo revelador nessa expressão que traduzimos por imagem de Deus.
Por outro lado, há algumas saídas dentro do texto do Antigo Testamento que, literariamente, pode nos dar algumas pistas do que é a Imago Dei. A primeira, que Walton lista, é o papel e função que Deus deu à humanidade: isso é destacado nas expressões “dominar” e “governar” que estão presentes no verso 28 do capítulo 1 de Gn. Observe que dominar e governar não significa destruir ou subordinar a natureza de forma violenta. Ao contrário: este verso (junto com outros textos) impõe ao ser humano a responsabilidade de cuidado do meio ambiente, obrigação de conservação no sentido de subsistência de sua espécie. É óbvio que a agenda ambientalista (no sentido de ideologia) não tem local de fala neste verso: Deus dotou o ser humano como mordomo com objetivo de utilizar os recursos naturais. É claro que, implicitamente, o uso da natureza não envolve destruição: como vou destruir algo que uso e sou obrigado, pelo criador, desempenhar um papel e função de mordomia? A outra saída é a identidade que Deus nos concede. Isso seria uma espécie de definição humana ou “redefinição” de uma espécie animal em um constructo diferenciado. É bem notório que não somos apenas meros animais; biologicamente, não temos qualquer diferença, mas há, intrinsecamente, algo que nos faz diferente e isso é a identidade que o Criador nos deu.
A terceira via diz respeito à substituição de Deus na terra, uma espécie de embaixada celestial. Conhecemos bem a função de um embaixador de um país em outro e a analogia é a mais próxima que posso colocar. Isso tem uma confluência com o que acontecia no AOP (Antigo Oriente Próximo): quando um rei dominava outra região ou cidade, ele colocava uma estátua ou uma imagem de si para representar o seu poder naquele local (lembre-se da história de Daniel e seus amigos. Por último, uma boa saída seria a imago Dei ser ou indicar o relacionamento que o Criador tem conosco: de toda a natureza, somos os únicos a possuir esse tipo de laço que é quebrado e restaurado por intermédio de Cristo.
CONCLUSÃO
Para finalizar e resumir os 6 dias (ainda terá o sábado) da criação quero destacar a ideia de que tudo isso é descrito em Gn 1 para destacar as funções que os objetos materiais (já criados e a Bíblia não cita suas origens físicas) vão ganhando ao longo da narrativa. Isso quer dizer, em outras palavras e em consonância com as outras mitologias do AOP, que o texto está preocupado em mostrar as funções e atribuições: este é o criar e fazer! Uma analogia que Walton utiliza e é perfeita para fechar esse ponto é a questão da casa-lar.
Uma construção com paredes, teto e móveis é apenas uma construção com objetos internos. O nome dessa construção preenchida com essas coisas é casa. Qual objetivo de uma casa? Se você não der alguma função para esse conglomerado de construção e objetos, ele não tem serventia: pode ser um depósito, um guardador de coisas etc. Mas, a partir do momento que você define que aquele objeto que pode soltar fogo é o fogão, aquele outro móvel com estofado é um sofá, o móvel que é ligado em uma tomada e refrigera coisas seja uma geladeira etc, você está tornando a casa em um lar: haverá pessoas morando nessa casa, com funções de móveis e compartimentos com finalidades específicas (local para dormir com um móvel para se deitar, local para tomar banho com um objeto que deixa a água cair etc). Resumindo: um lar é uma casa com funções.
E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã, o dia sexto.
Gênesis 1:31
Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.
Sugestão de leitura
- Para ter um entendimento melhor sobre teoria da evolução, um bom livro em português é Evolução, por Mark Ridley, 3a ed, editora Artmed;
- O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Série de livros The lost world series: The lost world of Adam e Eve (acima tem a edição em português), The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, The lost world of Scripture: ancient literary culture and biblical authority, The lost world of israelite conquest: covenant, retribution, and the fate of canaanites, The lost world of the flood (acima tem a edição em português) e The lost world of the Torah: law as covenant and wisdom in acnient contexto. Todos esses livros dessa série podem ser vistos no site da editora InterVarsity Press https://www.ivpress.com/the-lost-world-series. Recomendo fortemente essa série, que é escrita por John Walton e vários outros colaboradores.
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Como ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova. Um excelente livro, bastante simples e nada técnico;
- Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por André Reinke, editora Thomas Nelson Brasil. Um bom livro que mostra muitos detalhes históricos e culturais dos povos do AOP;
- Dissertação A “influência do mito babilônico da criação, Enuma Elish, em Gênesis 1,1 – 2,4a. É um interessante trabalho feito por Antonio Ivemar da Silva Pontes e que está disponível em http://tede2.unicap.br:8080/bitstream/tede/886/2/dissertacao_antonio_ivemar.pdf;
- Biblia Hebraica Stuttgartensia 5ª ed: este é o texto, com aparato crítico (comentários sobre a composição, a partir dos manuscritos mais perto dos originais), do AT;
- Torá: a lei de Moisés, edição bilíngue (hebraico e português), editora Sefer: este livro contém todo o Pentateuco, comentários e explicações (em rodapé), além de outros textos judaicos (como poemas e músicas).