As origens do homem: Gênesis é um relato de origem funcional

E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.

Gênesis 1:5

A coluna de hoje é uma continuação da série As Origens do Homem e com a temática sobre o relato de Gn 1. O cerne que discorrerei está na proposição 3 do livro O mundo perdido de Adão e Eva (vide nas sugestões de leitura para a referência completa) e que demonstrará que o texto bíblico de Gn 1 é uma descrição de origens funcionais, ou seja, Deus não está criando coisas do nada e revelando como Ele está fazendo a Moisés: Ele está colocando funções nas coisas criadas e é isso que o escritor está relatando. Não é uma temática nova para você, caro leitor do CosmoTeo: em diversos outros textos, como na série As Origens, já trabalhei que o relato bíblico não trata de ciência ou de origens no sentido físico. Aliás, já na coluna anterior, que foi a proposição 2, o centro é que criar tem um sentido que não é de dar origens, mas sim de dá funções.

Walton trabalha com uma divisão, nessa proposição, de 6 partes, uma para cada dia da semana da criação. Seguirei a forma como ele faz, mas em um futuro trabalharei, verso a verso, a semana da criação que inclui o 7º dia. No Instagram da igreja ElShaddai tive o prazer de gravar, apenas em áudio, uma série sobre a semana da criação. O foco foi apenas no texto bíblico, com vários episódios iniciais com uma longa introdução ao texto (escrita, mitologia etc). Caso queira ouvir está no perfil da igreja. Pretendo fazer algo semelhante aqui, mas de forma textual em breve.

Dia Um

O primeiro dia da criação está descrito em Gn 1:2 – 5. Observe que o texto fala de descrição de algo que já existe, e não uma criação de algo do nada. A começar que os israelitas não tinham essa concepção moderna que temos de criação de algo do nada (até para nós é difícil imaginar “um tempo” sem universo). Só que o foco do dia um não é criação material (como em todo o texto de Gn 1): é a função da alternância ou separação da luz e das trevas. E essa função é a ordenação do que já existe (materialmente falando) e vai ter um “objeto” como marcador dessa alternância: o tempo.

Para falar de tempo teríamos que ter muito conteúdo aqui: tempo físico, tempo psicológico, tempo quântico (aplicação do tempo na mecânica quântica) etc. Mas, o texto bíblico, que é o que nos interessa nesse momento, é uma descrição de ordem, ou seja, o tempo é são os ciclos de Dia e Noite, marcação no mundo físico (dia, semana, mês, ano, estações do ano etc). A questão do tempo, que tem sua origem aqui no dia Um, é tão importante que haverá, lá no dia Quatro, marcadores.

Dia Dois

A característica principal do dia é a separação de águas. Quando isso ocorre há uma divisão entre águas acima e abaixo do firmamento / expansão / abóboda etc. Isso é bastante intuitivo: se cava para achar água em poços, cai água do céu (chuva).

Tanto os israelitas quanto os povos antigos ao seu redor acreditavam que essa estrutura que fazia divisão entre as águas (firmamento) era sólida. É um pouco difícil definir a palavra raqîa que, em nossas Bíblias, está como firmamento / expansão / céus. Mas, a ideia permanece: é essa estrutura que faz separação entre águas. Uma analogia seria entender como a biosfera, atmosfera, essa região espacial onde moramos. A parte sólida, nesse entendimento, seria onde as nuvens se formam (entre 2 e 8 km de altura).

Novamente, aqui a ideia da criação do dia Dois não é de algo material. Inclusive, isso é explícito no verso 6: Haja uma expansão no meio das águas. Isso é claramente uma organização no que já está criado. Obviamente, ninguém antes do séc. XV tinha noção sobre composição molecular da atmosfera; Moisés também não.

Dia Três

O que é “feito” (entre aspas porque não é uma criação material) neste dia: ajuntamento de águas sob os céus e aparecimento de terra seca, nomeação do ajuntamento de águas e a produção, a partir da terra seca, de vida vegetal. Observe que em todo o texto, inclusive nesse dia, não há verbo descritivo de ação de Deus, ou seja, não há uma ação de Deus, no sentido material, de criação. Quem produz a vida vegetal é a terra (Gn 1:12), as águas já existiam (Gn 1:2) e aqui elas são organizadas (Gn 1:10).

Um outro destaque, uma espécie de resumo dos dias Um, Dois e Três: a natureza, que já existe em sentido material, é organizada, funções são estabelecidas. E essas funções são o que mais o ser humano necessita para a sua vida: tempo, clima e alimento.

Dia Quatro

Nesse dia, as funções são mais específicas. Os luminares são os reguladores do tempo: luminar maior, para governar o dia, e o luminar menor, para governar a noite. Além disso, Deus fez as estrelas como uma espécie de complemento. E aqui vale algumas observações que Walton não explicita nessa parte do livro, mas gostaria de destacar.

O primeiro é que a função dos luminares, como está no texto, é para servir de sinais ou de marcação para o tempo. Vide o verso 14 do cap. 1: … e sejam eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos. A estrutura desse verso (e de todo o capítulo), que é uma narrativa mito poética, tem repetições (vários e) com a ideia de várias funções correlacionadas. O tempo, conhecido pelos israelitas, tem um formato cíclico: passagem de claro e escuro, repetição dessa passagem com aparecimento parcial / total e desaparecimento da Lua (caracterizando as semanas e meses) e, por fim, repetição de tudo isso em períodos muito mais longos (anos).

O segundo destaque está relacionado com a astrologia. Em uma outra coluna dedicarei um texto exclusivo e mais extenso sobre essa temática, mas aqui o texto bíblico já nos deixa explicito: a astrologia era um campo de conhecimento divino muito importante entre os povos do AOP (Antigo Oriente Próximo). Através da leitura dos astros era possível, nessa concepção, saber a vontade dos deuses. Por exemplo, um eclipse solar era um sinal da divindade de algo ruim. As chuvas, um outro exemplo, era sinal de benção: vide Ezequiel 34:26 onde o próprio Deus menciona que fará chover. Mas, sabemos que, fisicamente, não é Deus que desce chuva e sim, as nuvens.

E mais do que isso, os astros poderiam ser considerados deuses em para alguns povos: Sol (egípcios), planetas (gregos e romanos) etc. Ou seja, a astrologia tinha uma importância imensa para os povos antigos. Aqui no texto bíblico, de forma irônica, Deus coloca a astrologia como algo “tão importante que Ele esqueceu de criar os astros no primeiro dia e só lembrou de criar no dia Quatro”. Ou seja, é uma pancada apologética violenta para os mitos da época (mitos da Mesopotâmia): não há outros deuses (apenas um), Ele é o criador de tudo, Ele não emerge do caos primordial (como os outros deuses que emergiam do caos ou das águas infinitas do Nilo, como é o caso dos egípcios), Ele organiza o caos (Gn 1:2, onde é traduzido as expressões sem forma e fazia), a astrologia é irrelevante e Ele cria os astros como marcadores de tempo e nada mais do que isso.

Dia Cinco

Esse é um dia, literalmente, cheio de vida e há milhares de destaques que podemos apontar nesses poucos versos (Gn 1:20 – 23). Começando de forma análoga ao dia Quatro, quem produz vida são as águas. Além da vida marítima, outro local geográfico que é povoado, nesse Quinto dia, é a expansão: aves. Assim como nos outros quatro dias, a ideia aqui não é de criação material e sim, de função. Inclusive, algumas pessoas interpretam que os dias 1 a 3 foram de criação de espaço e os dias 4 a 6, preenchimento deste espaço.

Um outro destaque é que, desde Gn 1:1, aqui é o primeiro local (Gn 1:21) onde há o uso da palavra hebraica bara. Já vimos na coluna passada que esse verbo, no hebraico, tem o sentido de produzir ordem, organizar, arrumar algo. Walton chama a atenção, também, para o verbo asâ que, para alguns intérpretes, tem a ideia de ser o braço executor do bara. Faz sentido, já que o verbo asâ, em todo o texto de Gn (e em outras passagens) traz a noção de manipular, fazer manufatura de algo para outro algo.

Um ponto importantíssimo que preciso chamar a sua atenção: conforme a sua espécie. Essa frase não pode ser confundida com espécie no sentido que usamos, hoje, da biologia. Por exemplo, veja a expressão Homo sapiens. A palavra Homo significa, dentro da taxonomia (organização dos seres vivos na biologia em nomenclaturas), o gênero biológico do ser humano. Já a expressão sapiens denota a espécie humana. Então, nós somos Homo sapiens e somos de uma espécie diferente dos neandertais (Homo neanderthalensis). Isso tudo é o que trabalhamos com espécie e isso não é o que o texto bíblico menciona sobre conforme a sua espécie: na concepção dos povos antigos, que não tinham as ciências biológicas, a questão da separação animal era visual, um agrupamento mais superficial. Por exemplo, há uma diferença clara entre bovinos e cães; então há uma “espécie” de bovinos e outra de cães.

Por último, algo muito diferente é feito no verso 22 do cap. 1 de Gn: a benção da multiplicação para os animais. Deus organiza o cosmo inteiro, desde o verso 2 do cap. 1 de Gn para funcionar de forma “independente”, ou seja, o cosmo para ele mesmo, com as leis físicas regendo tudo. Isso é diferente porque os deuses do AOP faziam o cosmo como sua morada, para servi-lhes, inclusive o ser humano (que faria o trabalho pesado dos deuses inferiores).

Conclusão

Não falarei, nesse texto, do dia Seis porque há muitos detalhes e queria explorá-lo um pouco mais. Aliás, ainda falarei do dia Sete, mas Walton, nessa proposição trabalha e acho importante mencionar um pouco sobre esse dia. Afinal, o sábado faz parte da semana da criação (= 7 dias) e tem particularidades extremamente interessantes e que não é só pela guarda. Isso tudo deixarei para a próxima coluna desta série As Origens do Homem.

Finalizando, espero que essas colunas abram seus olhos para a magnitude que é o texto da criação. A discussão entre literalidade, historicidade, como Deus criou etc é periférica e nem está inclusa no texto. Por outro lado, esse início da Bíblia tem conteúdo riquíssimo para aproveitarmos.

E foi a tarde e a manhã, o dia quinto.

Gênesis 1:23

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

  • Para ter um entendimento melhor sobre teoria da evolução, um bom livro em português é Evolução, por Mark Ridley, 3a ed, editora Artmed;
  • O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Série de livros The lost world seriesThe lost world of Adam e Eve (acima tem a edição em português), The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debateThe lost world of Scripture: ancient literary culture and biblical authorityThe lost world of israelite conquest: covenant, retribution, and the fate of canaanitesThe lost world of the flood (acima tem a edição em português) e The lost world of the Torah: law as covenant and wisdom in acnient contexto. Todos esses livros dessa série podem ser vistos no site da editora InterVarsity Press https://www.ivpress.com/the-lost-world-series. Recomendo fortemente essa série, que é escrita por John Walton e vários outros colaboradores.
  • O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Como ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova. Um excelente livro, bastante simples e nada técnico;
  • Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por André Reinke, editora Thomas Nelson Brasil. Um bom livro que mostra muitos detalhes históricos e culturais dos povos do AOP;
  • Dissertação A “influência do mito babilônico da criação, Enuma Elish, em Gênesis 1,1 – 2,4a. É um interessante trabalho feito por Antonio Ivemar da Silva Pontes e que está disponível em http://tede2.unicap.br:8080/bitstream/tede/886/2/dissertacao_antonio_ivemar.pdf;
  • Biblia Hebraica Stuttgartensia 5ª ed: este é o texto, com aparato crítico (comentários sobre a composição, a partir dos manuscritos mais perto dos originais), do AT;
  • Torá: a lei de Moisés, edição bilíngue (hebraico e português), editora Sefer: este livro contém todo o Pentateuco, comentários e explicações (em rodapé), além de outros textos judaicos (como poemas e músicas).
Papiro Greenfield mostrando uma página do Livro dos Mortos de Nestanebetisheru (Egito). Nut é a deusa do céu (que cobre a Terra toda), no meio está o deus Shu e em baixo, é o deus Geb (terra).
Fonte: https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA10554-87
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *