Mecânica Clássica: Primeira Lei de Newton
Cada alma que tem percepção é a mesma pessoa indivisível, embora em tempos diferentes e em diferentes órgãos de sentidos e movimentos. Há partes que são sucessivas na duração e coexistentes no espaço, mas nem uma nem outras na pessoa humana ou no seu princípio pensante e muito menos na substância pensante de Deus. Cada homem, na medida em que é uma coisa que tem percepção, é um e o mesmo homem ao longo do seu tempo de vida, em cada um dos seus órgãos sensoriais. Deus é o único e o mesmo Deus sempre e em toda a parte. É onipresente, não apenas virtualmente, mas substancialmente, porque a ação [virtude] exige substância. Nele estão contidas e se movem todas as coisas, mas ele não atua nelas nem elas nele. Deus não é afetado pelos movimentos dos corpos e os corpos não encontram resistência pela omnipresença de Deus.
Princípios matemáticos da filosofia natural, p. 885
A coluna de hoje vai dissertar sobre o cerne da Física. Observe que mencionei Física, e não a física de hoje, a física moderna ou algum outro ramo da ciência. E mais do que isso: o tema de hoje é central em todas as ciências naturais que, em algum grau ou abordagem, tratam do mundo físico. E esse grande tema foi desenvolvido e sintetizado em um termo que conhecemos As Leis de Newton.
As Leis de Newton são tão importantes que praticamente não nos damos conta delas no nosso dia a dia; são naturais. Mesmo a sua formulação mais “estranha” ou até “difícil” de experimentar em termos matemáticos (para quem não conhece de Cálculo Diferencial e Integral), é natural de sentir (a Segunda Lei).
Newton desenvolve as quatro leis (sim, são quatro e não apenas três leis) no séc. XVII. O livro onde ele expõe é uma verdadeira obra de arte literária, talvez um pouco enfadonha para ser lida atualmente, dada a sua sistematização contra intuitiva: ela é escrita em termos de geometria euclidiana (retas, círculos etc). Mesmo assim, o livro é escrito com todo o rigor científico disponível na época: matematização, explicação de como funciona o mundo (fisicamente falando) e ainda tem previsões ou, como podemos dizer hoje em dia, leis que regem o funcionamento até do que não foi experimentado ou testado em laboratório.
O livro Princípios matemáticos da filosofia natural, título em português e disponível gratuitamente no site da editora Fundação Calouste Gulbenkian (link na sessão sugestão de leitura) pode ser considerado uma unificação entre as leis da Terra e do céu em uma alusão que, antes de Newton, não se sabia como eram o funcionamento do mundo “do céu para cima”. Lembre-se, estamos no ano de 1687; não há satélites, balões ou aviões e há menos de 70 anos Galileu Galilei adaptou a luneta para fazer observações astronômicas e essas observações, comparadas com o que temos hoje, são binóculos de crianças. Então, é natural pensar que as leis celestiais fossem diferentes das leis físicas que temos na Terra.
Isso muda drasticamente com as Quatro Leis de Newton. Em suas palavras e na minha opinião, a unificação se dá na Definição V:
Uma força centrípeta é aquela pela qual os corpos são atraídos ou impelidos de algum modo tendem para um ponto como centro.
Princípios matemáticos da filosofia natural, p. 22
E, para matar o argumento central dos terraplanistas, na mesma página Newton destaca que este tipo de força que engloba a centrípeta é a gravidade, que é muito diferente do magnetismo e, óbvio, da eletricidade. Quase 200 anos depois, passando por Oersted e Faraday, Maxwelll unifica o magnetismo com a eletricidade: eletromagnetismo https://horadeberear.com.br/tag/serie-eletromagnetismo/. Na continuação da explicação da definição acima, Newton coloca:
E da mesma maneira que um projétil, pela força da gravidade, pode mover-se em órbita e dar volta à Terra, da mesma maneira a Lua, pela força da gravidade, se é atuada pela gravidade, ou por outra força qualquer que a empurre para a Terra, pode perpetuamente mover-se em torno desta, fora da trajetória retilínea que, pela sua força inata, deveria seguir.
Princípios matemáticos da filosofia natural, p. 24
É claro que Newton não produziu uma teoria ou conjunto de teorias com explicações demonstrando como são as naturezas dessas forças. Por exemplo, falando sobre a força da gravidade, no final do livro de quase 900 páginas:
Até aqui expliquei os fenómenos do céu e do nosso mar pela força da gravidade, mas não indiquei uma causa para a gravidade. […] Mas até aqui não fui capaz de deduzir dos fenómenos a razão para estas propriedades da gravidade e não faço hipóteses.
Princípios matemáticos da filosofia natural, p. 887 – 888
Em outras palavras: o que Newton fez, em toda essa grande obra, é uma sistematização de como o universo funciona em termos de cinemática e dinâmica. Ele não construiu uma teoria, no sentido de explicar o motivo de funcionamento do mundo físico; isso vem ao longo dos séculos.
Vamos começar com a Primeira Lei de Newton. Por uma questão de extensão, trarei apenas de uma. Espero que você, caro leitor do CosmoTeo, tenha lido as outras duas colunas anteriores onde explico diversos conceitos que são determinantes, como referencial inercial, movimento etc. As outras colunas são sobre cinemática e dinâmica. É óbvio que adotarei uma linguagem atual para explicar essas leis, até por uma questão didática. Você poderá entender até mais detalhes em qualquer livro de ensino médio ou livro de física de qualquer faculdade que trate do assunto. Apenas como referencial, estou utilizando o livro Física para cientistas e engenheiros, vol. 1: mecânica, oscilações e ondas, termodinâmica, do Paul Tipler e Gene Mosca, 6ª edição, editora LTC. É um livro tradicional para quem tem um primeiro contato, em qualquer faculdade de engenharia e ciências de forma geral, após sair do ensino médio. Nas sugestões de leitura indico outras obras, de mesmo nível, como referenciais.
PRIMEIRA LEI DE NEWTON: LEI DA INÉRCIA
Invocando o próprio Newton para enunciar a Primeira Lei ou, atualmente conhecida, Lei da Inércia:
Todo o corpo mantém o seu estado de repouso ou de movimento uniforme segundo uma linha reta, se não for compelido a mudar o seu estado por forças nele impressas.
Princípios matemáticos da filosofia natural, p. 41
Tem um outro autor, físico, que escreveu um livro-texto também utilizado no ensino superior chamado John Taylor e o livro é Mecânica clássica que sintetiza essa lei de forma magnífica e extremamente simples:
Na ausência de forças, uma partícula se move com velocidade constante.
Mecânica clássica, Taylor, p. 13
Mudou alguma coisa no enunciado do Newton para o do Taylor? Em essência, não. Mas simplificou o nosso entendimento. A começar com a ideia de corpo ou partícula. Para o pensamento científico até o início do séc. XX, corpo é qualquer objeto que tem uma quantidade de matéria, e partícula, como o próprio Taylor desta (e nós físicos utilizamos), é “um objeto com massa, sem dimensão, que pode se mover através do espaço, mas que não possui graus de liberdade internos”. Em outras palavras, partícula é qualquer coisa que o seu tamanho não é relevante para a análise, apenas o seu movimento.
Por exemplo, um carro andando em uma rodovia pode ser considerado como uma partícula ou um corpo ao se analisar o trânsito a nível estadual ou distrital: o tamanho do carro não importa, de forma escalar, em relação a rodovia. Uma galáxia se movendo no universo é considerada uma partícula para a cosmologia porque o tamanho dela não é relevante para a dinâmica e o funcionamento de todo o universo: apenas o conjunto de diversas galáxias.
Um outro detalhe que Taylor simplifica é a questão da velocidade constante. O que ele destaca, na Lei da Inércia, é que uma partícula (ou massa pontual), em ausência de forças, tem o seu movimento em velocidade constante e essa constância pode ser positiva, negativa ou nula. Velocidade positiva significa que a cada momento que passa, a minha velocidade é maior do que zero e permanece maior que zero. Velocidade nula é literalmente isso: velocidade constante igual a zero. Parece um contrassenso escrever ou explicar isso, mas é extremamente importante, matemática e fisicamente falando, definir os termos assim, porque isso é levado em conta em sistemas com vários referenciais. Já a ideia de velocidade negativa, apesar de aparentar estranha, significa apenas que o valor é negativo em relação a um referencial ou que você está andando de ré.
Um último termo que falta definir é força. Parece estranho, mas o conceito de força, para mim, é um dos mais difíceis de ser definido em palavras simples e até mesmo de ser entendido. Por exemplo, consigo compreender, tranquilamente, que massa (ou carga massa, tecnicamente falando) ou carga elétrica são propriedades intrínsecas da matéria / partícula. Mas força ou
A vis ínsita [ínsito: implantado, semeado pela natureza, de acordo com o dicionário Houaiss da língua portuguesa], ou força inata da matéria é um poder de resistir, pelo qual cada corpo, tanto em si caiba, continua no seu estado presente, seja de repouso, seja de movimento segundo uma reta.
Princípios matemáticos da filosofia natural, p. 20
Sem entramos na Segunda Lei de Newton, o que dá para se apreender dessa definição é que força é um poder (?) intrínseco da matéria que agem em outra matéria com capacidade de provocar uma ação. Poder aqui não é uma definição política ou algo transcendental; é apenas uma potência (nas palavras de Tomás de Aquino), um algo que pode fazer ou executar um ato, ação. Exemplo: uma semente de uma árvore qualquer tem a potência de se transformar em uma árvore com tronco, galhos e folhas; a força de uma partícula tem a potência de agir em outra e modificar o seu movimento.
Agora, vamos juntar todos esses conceitos e explicar, diretamente e de forma mais simples, a Lei da Inércia. Em poucas palavras,
Toda partícula permanece em repouso ou em movimento constante, em linha reta, até que uma força externa atue sobre ela.
Princípios matemáticos da filosofia natural, p. 41
Observe que acrescentei a palavra externa em força justamente para separar da força “interna”, como descreveu Newton. Em linha reta e repouso são expressões exclusivas do mundo newtoniano: tempo e espaço absolutos.
CONCLUSÃO
Por uma questão de espaço, para não ser tão cansativo, trouxe apenas a Primeira Lei. Tenho certeza que você terá muito o que refletir sobre as abordagens aqui. A intersecção com a teologia cristã é natural: a Primeira Lei de Newton é observacional, descritiva e advém do que é visto diretamente da natureza. Esta, por sua vez, é criação direta de Deus. Em última análise, o que descrevemos aqui e que foi estabelecido, de forma sistemática por Newton há 350 anos, é “apenas” uma demonstração de como Deus, o Criador dos céus e da terra, faz funcionar o mundo.
Tanto aqui, na finalização, quanto na epígrafe inicial, trago algumas palavras do próprio escritor do Principae: um cristão, crente em Deus, devoto, escritor de comentários bíblicos e teológicos e que, nas horas vagas, trabalhou e é considerado, por mim e por outros, o maior físico de todos os tempos:
Todos estão de acordo em que o supremo Deus existe necessariamente e por esta necessidade existe sempre e em toda a parte. Logo, Ele é todo idêntico, todo olhos, todo ouvidos, todo cérebro, todo braços; poder de perceber, compreender e agir; mas de maneira diferente da humana, não corporeamente, mas de modo totalmente desconhecido por nós. Como o cego não tem ideia das cores, assim não temos ideia da maneira como Deus omnisciente percebe e compreende tudo. Ele é totalmente destituído de corpo e figura corpórea e, portanto, não pode ser visto, ouvido nem tocado, nem tão pouco deve ser adorado sob qualquer forma corpórea. Temos ideias sobre os atributos, mas nada sabemos da real substância. Vemos apenas as formas e as cores dos corpos, ouvimos apenas os seus sons, apalpamos apenas as suas superfícies externas, cheiramos apenas os seus odores e provamos os seus sabores; mas quanto à substância mais profunda, nada sabemos, nem pelos sentidos nem por reflexão das nossas mentes. Muito menos temos qualquer ideia da substância de Deus. Apenas O conhecemos pelas Suas propriedades e atributos, pela Sua muito sábia e óptima construção das coisas [e suas causas finais]: adrniramo-lO pelas Suas perfeições, mas reverenciamo-lO e adoramo-lO por causa do Seu domínio. Adoramo-lO como servos. Pois um Deus sem domínio, providência e causas finais, não passaria de Destino e Natureza. Nenhuma mudança nas coisas provém duma necessidade metafisica cega, que seria a mesma sempre e em tosa a parte. Toda a diversidade das coisas criadas, cada qual no seu lugar e no seu tempo, só pode ter tido origem nas ideias e na vontade dum Ser que existe necessariamente. De Deus, dizemos alegoricamente que Ele vê, ouve fala, ri, ama, odeia, deseja, dá, recebe, alegra-se, zanga-se, combate, arquiteta, trabalha e constrói, porque todo o nosso discurso a respeito de Deus deriva duma certa semelhança com as coisas humanas que, não sendo perfeitas, têm, contudo, uma analogia da mesma espécie. Assim concluo a discussão a respeito de Deus. Mas tratar de Deus a partir dos fenómenos é certamente uma parte da filosofia “natural”
Princípios matemáticos da filosofia natural, p. 885 – 887
Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.
Sugestão de leitura
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- O livro, em português e gratuito, do Newton (Principae) pode ser baixado no site da editora Fundação Calouste Gulbenkian em https://gulbenkian.pt/publication/principios-matematicos-da-filosofia-natural/. Basta fazer um simples cadastro com e-mail e o download é disponibilizado gratuitamente;
- Há diversos livros de física que tratam sobre as leis de Newton. Em qualquer livro que você tiver do ensino médio ou de faculdade (engenharias ou física na parte de mecânica ou mecânica clássica) tem esse conteúdo. Recomendo, além disso, os livros que utilizei no texto: Física para cientistas e engenheiros, Volume 1: mecânica, oscilações e ondas, termodinâmica, por Paul Tipler e Gene Mosca, editora LTC; Mecânica, por Keith R. Symon, editora Campus e o Mecânica clássica, por John R. Taylor, editora Bookman. São livros-textos, técnicos, mas que você pode aproveitar muito bem o texto e até aprender um pouco de conteúdo que os cientistas aprendem.