Josué: Sol, Lua e a ação de Deus

Esforça-te, e tem bom ânimo; porque tu farás a este povo herdar a terra que jurei a seus pais lhes daria.

Josué 1:6

Introdução

O texto de hoje será um pouco diferente na dinâmica que tenho feito no CosmoTeo. Minha intenção é apresentar um modelo ou, no mínimo, uma explicação plausível que tenha o verdadeiro cerne do CosmoTeo: teologia e ciência, juntas, sendo aplicadas a um texto bíblico para melhor esclarecimento. E o texto escolhido é o de Josué 10. Aliás, não falarei de todo o texto, apenas do verso 13 e de todo o enredo que o acompanha: Sol e Lua “pararam” na batalha contra os amorreus.

Antes, alguns detalhes que falarei e do que não mencionarei. Não entrarei na questão doutrinária do texto e nem em todo o contexto histórico que levou Israel até àquela situação. Obviamente, não estou fazendo uma exegese completa do texto e, muito menos, uma hermenêutica. Meu foco será único e exclusivo no “evento” do Sol e Lua “pararem”. Analisarei, até onde meus conhecimentos vão, o texto bíblico no seu original hebraico, a geografia e o clima local, uma possível data (ou várias) para o evento e a astronomia no dia da batalha. Sim, é possível simularmos todo o céu (posição das estrelas, do Sol, das galáxias, de alguns cometas e asteroides conhecidos e eventos astronômicos) no dia da batalha; para isso, estou usando dados astronômicos da NASA (agência espacial americana) e o software Stellarium. Ao final de toda a apresentação de dados darei uma interpretação sobre o evento e mostrarei um modelo teórico do que acho compatível com o texto bíblico.

Modelo teórico ou teoria é um corpo de conhecimento que abarca evidências e dá uma explicação para um dado fenômeno. É claro que não há um modelo perfeito e sempre é ajustado à medida que novas evidências são apresentadas. É justamente o que proponho no fim desta coluna: um modelo que vejo compatível com o texto bíblico e com os fenômenos astronômicos na batalha contra os amorreus. Esse modelo é perfeito, completo e basta em si? Não, mas é o que tem mais detalhes do que poderia ter acontecido. Nem precisaria, mas um destaque importantíssimo: a ideia não é minha e eu não fiz isso sozinho. O que fiz, de forma muito simples, foi juntar a informação teológica e científica. Se você desejar aperfeiçoar, descartar ou substituir este modelo, todas as informações estarão postas no próprio texto e na sugestão de leitura terá outras indicações que acho pertinentes.

Texto base: Josué 10:12, 13

Vamos ao texto de Josué 10:12, 13 na versão, em português, da Almeida Corrigida Fiel, que é o padrão que utilizo em todos os textos da CosmoTeo:

Então Josué falou ao Senhor, no dia em que o Senhor deu os amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse na presença dos israelitas: Sol, detém-te em Gibeom, e tu, lua, no vale de Ajalom.

E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos. Isto não está escrito no livro de Jasher? O sol, pois, se deteve no meio do céu, e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro.

Josué 10:12, 13

Apenas para contextualizar, sem entrar em detalhes históricos. O verso 5 do mesmo capítulo 10 de Josué menciona que 5 reis dos amorreus se juntaram e sitiaram Gibeom. Josué vai com exército ajudar os sitiados. O verso 11 menciona um detalhe geográfico e um fenômeno interessante: o Senhor lançou sobre os amorreus pedras do céu (mais para frente, no mesmo verso, diz que são pedras de saraiva) e morreram mais inimigos com esse evento do que à espada na batalha conta Israel. Depois disso, entra o verso 12 e 13, citados acima.

O verso 12 menciona que no dia em que o Senhor deu os amorreus nas mãos dos filhos de Israel aconteceu um outro fenômeno: Josué fala ao Senhor. O que ele fala é: Sol, detém-te em Gibeom, e tu, lua, no vale de Ajalom. O verso 13 vem a confirmar que o Sol e a Lua “pararam” (daqui a pouco explicarei estas aspas que são minhas e não do texto). Olhando o quadro geral, o que parece é que os eventos das pedras do céu caindo e Sol / Lua “pararem” são diferentes. E, diferente como ocorre em outros textos bíblicos, não há repetição dos locais Gibeom e Vale de Ajalom no verso 13.

No verso 14 há uma informação de que este dia não houve semelhante. Aqui, um pouco mais de cuidado: o escritor deste texto final está colocando este ponto. Isto não indica que nunca, na história humana, tal evento aconteceu. Em outras palavras: na edição e na finalização do livro de Josué, quem está concluindo esta obra é que coloca que não houve dia semelhante. Usando um outro exemplo: sabemos que quem escreveu Dt 34 e Js 24 não foram Moisés e Josué (respectivamente); é obvio que houve uma finalização ou uma edição posterior (a datação não é importante aqui). O que estou afirmando é que o “editor” ou o “finalizador” do texto de Josué é que poderia ter colocado a informação de Js 10:14. Não chega a ser um absurdo esta hipótese pois no mesmo verso 13 há uma informação de que estes detalhes estão escritos no livro de Jasher e este, está perdido até hoje.

Texto bíblico em hebraico. Edição contendo Torá (Pentateuco), Tehilim (Salmos) e Tanya (escritos rabínicos de tradição Chassídica).
Imagem cedida por Thiago Severo

Geoclimatologia

A localização possível da batalha pode ser sintetizada no mapa abaixo. Gibeom está a noroeste de Jebus, nome antigo de Jerusalém.

Abaixo, o mapa atual da região pesquisado pelo Google Maps, que mostra, no alfinete, o sítio arqueológico de Gieon:

O clima do Israel antigo é o que já conhecemos por outros textos bíblicos: semiárido a árido, sendo a oeste o mar Mediterrâneo e ao leste, rio Jordão (desta região que estou analisando) e deserto. Tem pontos elevados ao norte e o ponto mais baixo do planeta, ao sul: mar Morto. Praticamente há 2 estações: inverno e verão. No primeiro, bastante úmido com muitas chuvas. O outro, muito quente e seco. As chuvas estão entre os meses de novembro e maio (variando) que correspondem ao período mais frio. O restante do ano, entre maio e novembro, a predominância é de seca e calor. Mais informações sobre o clima, hidrografia, botânica e outros detalhes podem ser vistos no artigo do Jacob Ben-Yoseph e na Enciclopédia Britannica.

Datação histórica

A parte de datação de várias histórias bíblicas sempre são assunto de diversos debates. O ponto central, aqui, é datar algum referencial e inferir os outros eventos, por exemplo, achar a data do êxodo do Egito. Há 2 períodos de datas em ampla discussão. Um deles toma por base a época de Salomão e, voltando no tempo, a saída de Israel do Egito fica por volta do ano 1446/5 a.C. Outro referencial, vindo da arqueologia e com uma fortíssima inclinação para uma interpretação específica, vai colocar o êxodo bem mais para frente, na época de Ramsés II. Como complemento sugiro uma dissertação de 2009, uma tese de 2015 e uma boa apostila sobre cronologia do período dos Juízes da Escola Charles Spurgeon. Não são específicos trabalhos sobre datação, mas tem importantes contribuições a serem levadas em conta na hora de analisar o êxodo e a conquista, em seu período inicial, de Canaã. A Enciclopédia Britannica também tem verbetes que merecem atenção inicial sobre esta questão.

Não tenho por objetivo, agora, discutir datas e referenciais históricos. Dado o evento astronômico que aconteceu (explicarei mais para frente), fiz simulações utilizando o software livre Stellarium versão 0.20.1 e a base de dados de eclipses solares da NASA. Há diversas datas que se “encaixam”, tanto as do fim do séc. XV a.C. como do final do séc. XIII a.C. Como não quero entrar, neste momento, em controvérsias e discussões fora do foco, adotarei a data da batalha de Israel contra os reis amorreus como sendo o ano de 1.206 a.C. O motivo é que há pesquisas publicadas sobre este modelo que apresentarei a frente e, pelo que conheço dos trabalhos de um dos autores (Colin Humphreys), é uma pesquisa que, no mínimo, merece toda a atenção.

Nas simulações com o Stellarium e comparando com a base de dados da NASA outras datas poderiam ser escolhidas, como o ano de 1.405 a.C. ou 1.359 a.C. Nas simulações com o Stellarium aparecem eclipses parciais em regiões muito próximas de Gibeom, mas apenas o ano de 1.206 a.C. a faixa de eclipse passa exatamente em cima. Precisaria fazer mais refinamento nesses dados, incluindo cálculos de termodinâmica e climatologia aplicados na região para ver se há ou não alguma variação substancial para esses outros eclipses solares. Mas, para uma questão de escolha e apenas apresentação do modelo, vou abster-se destas questões, por agora, e adotar apenas o ano de 1.206 a.C.

Texto base original: Josué 10:12, 13

Voltando às vistas ao texto de Josué, mas em sua composição hebraica. Aqui, estarei utilizando a Biblia Hebraica Stuttgartensia, 5ª edição alemã de 1997. Para analisar algumas expressões desse texto também estou utilizando o programa livre theWord versão 5.0.0.1450 e os módulos: the Hebrew interpolated Study Bible (versão HISB_7.16.12) e Michelson’s enhaced Strong’s dictionaires of the greek and Hebrew Testaments, 2ª edição (março/2015) e versão (para o dicionário hebraico) 1.04. Também, estou utilizando o Dicionário Bíblico Strong: léxico hebraico, aramaico e grego de Strong de 2002 da Sociedade Bíblica do Brasil (chamarei de Strong SBB) e Léxico hebraico e aramaico do Antigo Testamento por William Holladay de 2010 da editora Vida Nova (chamarei de Léxico Vida Nova). Outros livros citarei na aba abaixo de sugestões de leitura e sites, coloco os links na mesma expressão quando citados.

Pág 371 onde está o texto de Js 10:11 – 24, incluindo o aparato crítico.
Imagem cedida por Thiago Severo que tem esta Bíblia em mãos

Fazendo um zoom no texto específico de Js 10:12 e 13:

Imagem cedida por Thiago Severo

As palavras sublinhadas e com numerações em vermelho são as que focarei. O Strong do 1 e 2 é H1826 (raiz H1820) e o 3, H5975.

Eclipse solar em 1.206 a.C.

No dia 30 de outubro de 1.206 a.C. houve um eclipse na região de Gibeom. Este evento foi muito importante até para datar outros registros históricos, como está detalhado no artigo do Humphreys e Waddington. No database de eclipses solares da NASA há mais informações (entre as linhas azuis é a ocorrência do eclipse solar):

Aqui tem um atlas dos eclipses entre 1.219 e 1.200 a.C.:

Um zoom da região de Israel:

Fonte: https://eclipse.gsfc.nasa.gov/SEatlas/SEatlas-2/SEatlas-1219.GIF

Utilizando essa data fiz uma simulação no Stellarium com os dados na parte final da imagem:

Simulação feita pelo Stellarium 0.20.1. Região de Jerusalém, 30 de outubro de 1.206 a.C, 11:30 da manhã.

Análise simples

Olhando o texto no original, as palavras (na raiz) damam (H1820 / H1826) tem vários sentidos e o mais geral algo tendendo a cessar ou parar a sua função. Já o segundo termo, `amad (H5975) tem o sentido, mais geral, de permanecer no estado “cessado” / parado. Veja que o verso 13 começa dizendo que o estado do Sol e da Lua, de parados as suas funções permanecem (as 4 primeiras palavras do verso 13 no hebraico). E, por outro lado: ao que tudo indica houve um eclipse solar na região da batalha entre Israel e os amorreus (seja o ano de 1.206 ou perto do final do séc. XV a.C. a data real.

Com uma mão a gente lê o texto bíblico, em seu original, e vê que o Sol / Lua pararam a suas funções e pergunta ao escritor em seu contexto original: quais são as funções do Sol e da Lua? Resposta: iluminar e, com isso, marcar os tempos. Não há função física de maré, forças gravitacionais, ação de deuses ou qualquer outra coisa semelhante. Para o escritor original, Deus fez com que o Sol e a Lua cessassem suas funções (de iluminar e marcar o tempo). Fazendo um translado para o séc. XXI: a única forma do Sol e da Lua pararem de fazer as suas funções (na visão do escritor original) é tendo um eclipse solar.

Conclusão

Sobre eclipses solar e lunar já tem um texto que publiquei há um tempo. Nele, você pode ver mais detalhes de como funciona um eclipse solar, mais especificamente. E, verificando como é o funcionamento de um eclipse solar, considerando o rio cultural (escritor, mensagem, destinatário, sociedade e cultura originais) e o registro do texto bíblico (que não é completo para o evento; vide que ele indica outra fonte, o livro perdido de Jasher), o que posso concluir, neste modelo: o evento de Sol e Lua pararem, em Josué 10, na batalha de Israel contra os amorreus, é de um eclipse solar.

Este tipo de eclipse, em outras culturas (talvez também nas dos povos do Antigo Oriente Próximo) tem significados diversos, mas concentrando-se no ponto de ser uma destruição ou um aviso de caos pelos deuses. Não explorei esse ponto, mas está condizente com o contexto astronômico e o que foi relatado no verso 16 de Josué 10.

Então a Bíblia não foi escrita direito, é mentirosa e a ciência explica tudo? Não! Como tentei demonstrar, tanto aqui como em outros textos da coluna CosmoTeo, a Bíblia não possui ensino ou manual de ciências e muito menos tem qualquer intenção de “revelar” o conhecimento científico final. Ao contrário: as páginas sagradas demonstram a revelação especial de Deus e o seu relacionamento com o homem. Se esse homem está imerso em uma cultura que tem ou não entendimento, primitivo ou avançado, de astronomia, são outros quinhentos e não são relevantes para a revelação especial. Por outro lado, vendo com as ferramentas da ciência, tentando explicar com modelos factíveis (como esse) eventos que não são detalhados na Palavra de Deus, vejo o cuidado de Deus na Natureza e a revelação geral (que é diferente da especial) que Ele se faz em nosso universo.

O último detalhe é um agradecimento especial ao Thiago Severo que, gentilmente, me ajudou muito nas discussões sobre o texto original em hebraico de Josué 10, inclusive fornecendo imagens da sua própria Bíblia Stuttgartensia. Foi fundamental todo esse aparato intelectual que ele me forneceu. Quem quiser saber um pouco mais dos trabalhos que o Thiago Severo já fez com o prof. Carlos Xavier no Teodidatas recomendo o vídeo sobre molinismo e libertarianismo e uma aula sobre a historicidade da ressurreição de Cristo.

Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos.

Salmo 19:1

Só isso?! Sim! Mas, ficou em dúvida, quer perguntar algo, deixar algum comentário ou sugerir algum tema, deixe abaixo! Ficarei feliz em te responder, seja nos comentários ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

Praticamente todas as fontes que utilizei para esta coluna estão citadas ou linkadas no próprio texto. Mas, ainda farei mais uma recomendação, que é a tradicional para saber mais sobre astronomia e astrofísica:

  • Livro Astronomia e astrofísica, por S. O. Kepler e Maria de Fátima Saraiva. Este livro é disponibilizado no próprio site dos autores, que são professores da UFRGS. É um excelente material de consulta: http://astro.if.ufrgs.br/livro.pdf.
373Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

Texto bíblico em hebraico. Edição contendo Torá (Pentateuco), Tehilim (Salmos) e Tanya (escritos rabínicos de tradição Chassídica).
Imagem cedida pelo Thiago Severo

2 comentários em “Josué: Sol, Lua e a ação de Deus

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