Relação ciência e fé cristã: o mito da centralidade humana no geocentrismo
Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que preparaste;
Que é o homem mortal para que te lembres dele? E o filho do homem, para que o visites?
Salmo 8:3, 4
Na coluna O centro do universo: geocentrismo e heliocentrismo vimos um pouco sobre o geocentrismo de Ptolomeu (séc. II) e a mudança para o heliocentrismo que começou com Copérnico e foi concluído com Kepler e suas três leis. A coluna de hoje, que compõe mais um capítulo na série Ciência e fé cristã, vou trabalhar um outro ponto histórico: o mito (no sentido de história inventada) de que o ser humano foi retirado do centro do universo (sistema geocêntrico), onde a natureza inteira foi criada apenas para servi-lo, e foi colocado na periferia (sistema heliocêntrico).
Não sei se você já leu, adquiriu ou conhece o livro Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião editado por Ronald Numbers. Apenas para contextualizar, este livro é uma coletânea de artigos, curtos e simples, que trata de 25 mitos (histórias inventadas) sobre a relação entre ciência e religião (com maior conteúdo sobre o cristianismo). O autor do mito 6 (que as ideias de Copérnico removeram os seres humanos do centro do cosmos), Dennis Danielson, escreveu um artigo muito interessante sobre essa temática. E, assim como estou fazendo em outras colunas, a base desta é este livro do Numbers.
Sobre a criação do homem, é óbvio que ele tem a imagem e semelhança de Deus (Gn 1:27) mas em nenhuma parte do texto bíblico expressa que ele é o centro do universo ou da criação. Até a própria narrativa mítica cristã de Gênesis (calma, não se escandalize com esse termo; ainda escreverei sobre este tema) mostra que o homem foi o último ser criado em uma posição geográfica que não é central. Um outro ponto que devemos ter em mente é que geocentrismo (Terra no centro do universo em termos de geometria) é completamente diferente de antropocentrismo (humanidade como valor central). O que Copérnico trabalhou foi uma mudança de posicionamento geográfico ou protocosmológico de reposicionamento da Terra em relação ao Sol, ou seja, a colocação do Sol com posição central em um sistema que objetos, incluindo a Terra, teriam movimentos circulares ao redor da nossa estrela.
Relembrando muito rapidamente o que pode ser visto na coluna sobre geocentrismo e heliocentrismo: Ptolomeu desenvolveu o sistema geocêntrico, ou seja, com a Terra no centro do universo e todos os outros corpos celestes (Sol, Lua, planetas etc) tinham movimentos circulares. Esta obra de Ptolomeu é do séc. II, mas antes temos toda a influência de Aristóteles, a ideia dos elementos fundamentais (terra, agua, ar e fogo). Nesse sistema aristotélico, o elemento mais pesado ou o que estava no ponto central do universo era a terra. Os outros elementos iam do mais pesado ao mais leve (fogo). E a maior quantidade que vemos, dentre esses elementos, é a terra, onde pisamos. Resumindo a história, a Terra (o planeta) estava no centro do universo por atrair as coisas mais pesadas (terra, chão) para mais perto de si.
Mas, a posição central da Terra no universo, além dessa questão física aristotélica, ainda tinha outras implicações que não eram nada boas. Maimônides (filósofo judeu que viveu entre 1135 e 1204) destacava que o centro do universo estão as coisas mais obscuras. Lá, no centro (que era a Terra) estava mais longe da fonte de luz, do brilho e de Deus (na cosmogonia antiga, a Terra era plana e Deus estava no terceiro, 2 Coríntios 12:2). O grande teólogo Tomás de Aquino dizia que a terra é o material mais grosseiro de todos os corpos no universo: ela é o centro. Dante, na obra A divina comédia (canto XXXIV da parte do inferno), coloca a Terra ou o centro do universo ou de todo o sistema que ele trabalha (inferno, purgatório e céu).
Como pode-se observar só por esses exemplos acima (Bíblia, Maimônides, Tomás de Aquino e Dante) a posição geográfica de centro do universo sendo a Terra não era nada boa. Na idade Média, no período da Renascença Italiana, por exemplo, ela era considerada como ocupando as partes excrementais e imundas do mundo inferior. Já o Sol, o grande astro que iluminava a Terra (mesmo no sistema geocêntrico), estava em uma gloriosa posição acima (e não no centro). Na mudança para o sistema heliocêntrico, Copérnico colocou o Sol, imóvel e em uma posição reinante, como o centro do universo e a Terra, sendo promovida para o status de “estrela” que se move junto e entre os outros planetas. Ou seja, uma jogada dupla: a posição que a Terra estava, de imundícia, foi repaginada: ela foi para uma posição destaque como outras estrelas no céu e o Sol, promovido a um lugar de honra no centro do universo.
Para Kepler e outros copernicanos do séc. XVII foi uma grande vantagem a recolocação da Terra em uma posição geográfica periférica em relação ao Sol, centro do universo. Claro que até Newton, passando por Galileu, ainda não se tinha uma explicação física sobre a dinâmica do sistema solar. Aliás, a mecânica newtoniana só explicaria de forma descritiva o funcionamento através, principalmente, da lei de gravitação universal. Só vamos ter um quadro mais completo sobre o universo em si, a posição da Terra, a nossa galáxia em relação as outras, no séc. XX com o desenvolvimento da cosmologia moderna com Einstein (1916), a teoria do Big Bang (com Friedmann, Lemaître, Robertson e Walker, 1919 a 1934) e as observações de Hubble (1927 e 1929). Mas esse contexto histórico e esses detalhes cosmológicos, incluindo a teoria do Big Bang, serão temas futuros aqui no CosmoTeo.
Resumindo, o mito (história inventada) de que Copérnico removeu o ser humano do centro do cosmo parece que já nasceu deficitário. Nenhum documento antigo ou mesmo uma análise filosófica ou teológica parece dar suporte para esse tipo de ideia. Por exemplo, Danielson cita o grande astrônomo Martin Rees como um repetidor desta fake news na abertura do mito 6 no livro Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião na pág. 79:
Copérnico destronou a Terra da posição privilegiada dada a ela pela cosmologia de Ptolomeu.
Sir Martin Rees, Before the Beginning, 1998
Vejo toda essa história como sendo mais uma tentativa, frustrada, de tirar ou minar alguma autoridade bíblica. Muitas pessoas, principalmente as que não acreditam em Deus ou distorcem a Bíblia (seja por falta de conhecimento ou por militância em alguma ideologia), colocam essa ideia como sendo, inicialmente, do texto bíblico. “Deus criou a Terra como centro do universo e isso está em consonância com o terraplanismo bíblico. Depois, vieram os seres iluminados na era da razão, destronaram a Terra dessa posição privilegiada colocaram o homem na posição de nada no universo”. Esse tipo de tese ou defesa desse tipo de argumento só demonstra que essa pessoa não conhece o texto sagrado em seu contexto original (exegese) e a sede por militar, que está acima da razão que ela tanto defende, é minada pela história pura e simples.
Foi um feito notável: Copérnico simultaneamente elevou o status cósmico da Terra e do sol. A segunda parte de sua tarefa foi tão bem-sucedida que, desde então, a remoção da Terra do que se tornou o lugar de honra do Sol parece para alguns uma diminuição de seu valor. A refutação desta interpretação anacrônica, porém, é simples: a Terra elevada do que era então considerado “as partes excrementais e imundas do mundo inferior” não pode sinceramente ser vista como uma demoção.
Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião, Ronald Numbers, pág. 85
Só isso?! Sim! Mas, ficou em dúvida, quer perguntar algo, deixar algum comentário ou sugerir algum tema, deixe abaixo! Ficarei feliz em te responder, seja nos comentários ou em algum artigo específico.
Sugestão de leitura
- O mito 6, que as ideias de Copérnico removeram os seres humanos do centro do cosmos, está no livro Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião organizado por Ronald Numbers, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Um pouco mais de história sobre a relação entre ciência e fé cristã pode ser encontrada no livro Fundamentos do diálogo entre ciência e religião por Alister McGrath, editora Edições Loyola;
- Outro livro muito bom sobre essa parte histórica é Ciência e religião organizado por Peter Harrison, editora Ideias & Letras;
- Outra obra muito boa sobre esse tema é Os territórios da ciência e da religião por Peter Harrison, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- No site da ABC2 há muito material (artigos e vídeos no YouTube) sobre o relacionamento entre ciência e fé cristã: http://cristaosnaciencia.org.br/.