As Origens: entendimento cultural no Antigo Oriente Próximo

Fizeste em pedaços as cabeças do leviatã, e o deste por mantimento aos habitantes do deserto.

Salmos 74:14

Hoje a coluna será dedicada apenas às relações do mito: mitologia, narrativa mítica. Já trabalhei com essa temática com outros focos, por exemplo em discussões ou discordâncias que são prejudiciais à comunidade cristã no diálogo entre a fé e a ciência e, de forma espaçada, nessa série As Origens, como na primeira coluna sobre os prolegômenos (aquilo que dever se saber de antemão). Também, cheguei a fazer uma comparação entre buracos negros e os monstros mitológicos como Leviatã e Behemote (citados no texto bíblico). Aqui, serei exclusivo a esse tema e tomarei por base o livro do John Walton, The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate. A descrição completa, inclusive informações de materiais complementares, você encontra tudo na sessão no final, sugestão de leitura.

Uma pergunta bem provocativa: há uma mitologia bíblica?. Colocando de outra forma, talvez mais palatável: na Bíblia há mito(s)? Calma, vamos melhorar a pergunta: há narrativas míticas no texto sagrado? Vou ser mais específico para não ser mal-entendido: o livro inspirado por Deus contém alguma porção de literatura mítica em seu conteúdo? Como sempre, caro leitor, não darei respostas prontas e definitivas; apenas reflexões e pontos a serem considerados. Caso discorde de qualquer parte (ou de tudo) aqui ou de outras colunas dessa série (ou de todas), sem problemas; apenas peço que leia, pense, pondere, reflita e pesquise nas indicações que fizer das obras (e de outras que conhecer) antes de jogar tudo fora.

Relembrando alguns pontos sobre John Walton e sua obra. Walton é professor de teologia, Antigo Testamento (AT), no Wheaton College. Toda a sua carreira acadêmica e pesquisa é voltada para a teologia do AT, literatura do Antigo Oriente Próximo (AOP – povos ao redor de Israel, como egípcios, sumérios, cananeus, babilônicos etc). Desconfio, pelo que já li das obras dele, que já fez pesquisa com material primário em mãos, como tabuinhas escritas em cuneiforme das literaturas da Mesopotâmia. Ele tem uma grande quantidade de livros publicados e a série The Lost World Series, publicada pela InterVasity Press tem 6 livros (até agora). Destes, há 2 traduções em português: O mundo perdido do dilúvio e O mundo perdido de Adão e Eva (na sessão sobre sugestão de livros há a descrição completa dessas 2 obras). O livro que tomarei por base hoje, infelizmente, não tem tradução em português (até o momento). É o livro mais fundamental e o que mais me interessa: claro, vai falar justamente sobre Gênesis 1 onde está a “cosmologia” da Bíblia.

No prefácio do livro The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, Walton vai dar o panorama do problema em se traduzir um documento antigo para os nossos dias atuais. Gênesis, tomando como pressuposto que foi escrito por Moisés (em boa parte e sem entrar nas questões de edição final) por volta do séc. XV a.C. e em hebraico arcaico, é um livro muito antigo. Seus destinatários originais estavam imersos em uma cultura que não fazemos a menor ideia prática de como era vivida. E ai já era o primeiro problema que quero destacar. Citando o próprio Walton na pág. 6 do referido livro: “The Old testament does communicate to us and it was written for us, and for all humankind. But it was not written to us. It was written to Israel”. Fazendo uma tradução livre,

O AT nos comunica que foi escrito para nós e para toda a humanidade. Mas ele não foi escrito com destino a nós. Ele foi destinado a Israel.

Há um jogo de palavras que tentei expressar em português e que é bem claro em inglês (to e for). Em outras palavras: o texto, inspirada e inerrante, do AT foi escrita para toda a humanidade em todos os lugares do mundo e para todas as épocas. Mas, o AT não é destinado para todo mundo em todas as épocas: o destinatário original do AT é Israel e naquela época específica; claro que o povo, de forma geral, entenderá o texto dentro de sua cultura temporalmente diferente com as devidas adaptações.

Adaptações? Sim. Traduzir um texto de um idioma para outro já é complicado aos nossos dias atuais; vide das palavras to e for, do inglês, que tive que fazer uma adaptação para nós, brasileiros de fala portuguesa, entender a mensagem que Walton quer passar. E, como conhecemos muito bem apenas do português, linguagem está imerso em uma cultura, que varia com o tempo. Vou tomar outra citação direta do Walton sobre esse tema na pág. 6 ainda: “Language assumes a culture, operates in a culture, serves a culture, and is designed to communicate into the framework of a culture”. Fazendo uma nova tradução livre,

Linguagem pressupõe uma cultura, opera em uma cultura, serve em uma cultura e é projetada em uma cultura para se comunicar com a estrutura de uma cultura.

Ou seja, linguagem (no sentido de idioma e tudo o que está envolvido na questão comunicativa) está intrinsecamente conectada com uma cultura. Para traduzirmos um texto de um idioma a outro, como é o exemplo prático que estou fazendo aqui do inglês para o português, é necessário entender esses elementos comunicativos dentro da cultura original.

Não sei se estou conseguindo me comunicar da forma como pretendo. Veja que só aqui, em português e expressando palavras que eu e você, caro leitor, entendemos, já podemos ter uma comunicação que não seja totalmente efetiva. Agora, tente imaginar isso para Gênesis (nosso objeto em mente). É óbvio que nem estou discutindo a inerrância do texto ou a inspiração divina; isso para mim é basilar como cristão e indiscutível, não abro mão. A conversa é no nível de entendimento do remetente original com o destinatário original: Deus já trabalhou comigo e com você, como cristãos, esse texto; o resto é discussão secundária, ninguém vai perder a salvação por isso e, muito menos, vai se tornar herege por concordar / discordar ou estudar esses temas.

Resumindo, até aqui, as ideias de comunicação de texto: o AT é escrito para nós (humanidade, em todos os locais e em todas as épocas), mas não é destinado a nós. Uma linguagem (idioma e todos os elementos comunicativos, como escrita, tradições orais e grafadas) está imersa em uma cultura e é indissociável dela. Traduzir um texto é traduzir a sua linguagem e, no mesmo trabalho, traduzir a sua cultura, o entendimento que essa linguagem tem naquela cultura. Podemos estruturar que a tradução de um texto, como de Gênesis, passa por 3 níveis, sendo o último o que deve ser alcançado por ser o mais completo: tradução de palavras (de forma seca, dentro da gramática), tradução de ideias (o contexto onde o texto está inserido e sua relação com outras passagens) e tradução de cultura (envolve o meio do remetente e destinatário originais, incluindo linguagem, política, sociedade, economia etc). A ideia final será uma tradução de todo o contexto nativo (linguagem, ideias e cultura) para o nosso contexto atual, de leitor com um espaço muito grande de tempo, localidade e pensamento. Por isso, dentre outros pontos, há tantas traduções da Bíblia, incluindo no nosso ano de 2021.

Um passo a frente. Agora temos consciência de que a cultura é o nosso objeto de estudo e trabalho ao fazer uma tradução de um texto (no nosso caso, Gênesis). Linguagem é o cerne de observação nesse contexto cultural antigo. Só que, analisando apenas palavras do texto sagrado puramente, não nos dará todo o contexto cultural; afinal, existia milhões de outras pessoas ao redor de Israel no momento da escrita de Gênesis. O que precisamos fazer, como fazemos em qualquer trabalho atual de tradução, é verificar a literatura dessas culturas.

A literatura de Israel, já temos em mãos: Gênesis e o AT. Agora, vamos ver a literatura ao redor de Israel, ou seja, dos povos do AOP. Isso vai nos dar uma visão mais ampla para analisar a cultura de Israel. Usando uma outra citação, na pág. 9, do mesmo livro do Walton: “We have already noted that language is keyed to culture, and we may then also reconize that literature is a window to the culture that produced it. We can begin to undestand the culture by becoming familiar with its literature”. Fazendo a tradução livre,

Nós já observamos que a linguagem está conectada à cultura, então podemos reconhecer que a literatura é uma janela que a cultura produziu. Podemos começar a entender a cultura nos familiarizando com sua literatura.

O outro trecho, na pág. 10, é fundamental para fechar essa ideia de linguagem, literatura e cultura como chaves de entendimento do texto no seu contexto original: “The key then is to be found in the literature from the rest of the ancient world. Here we will discover many insights into ancient categories, concepts and perspectives. Not only do we expect to find linkages, we do in fact find many such linkages that enhance our understanding of the Bible.”. Fazendo a ponte livre para o português,

Então a chave é encontrar na literatura do restante do mundo antigo. Aqui descobriremos muitas ideias sobre categorias, conceitos e perspectivas. Não esperamos encontrar apenas conexões, mas faremos, de fato, muitas dessas conexões que aumentam nossa compreensão na Bíblia.

Como a linguagem (idioma, vocabulário, gramática) está imerso na cultura, entender o funcionamento da cultura e traduzi-la é o trabalho final no entendimento do texto bíblico. Mas, para isso ser feito, precisamos entender a literatura, que é a base da cultura (essas ideias ainda servem para os nossos dias: quer entender o funcionamento da sociedade, veja a sua produção literária).

A receita de bolo que Walton propõe é: comparar o AT com a literatura do AOP. Ao fazer isso, veremos que há um terreno comum para toda a cultura. Israel não é influenciado por outros povos, culturas etc: Israel faz parte do mesmo mundo antigo. É claro que há características culturais e literárias diferentes dos outros povos, inclusive há diferenças desses mesmos elementos entre os outros povos do AOP. No fim da pág. 11 e início da 12: “As a result, we are not looking at ancient literature to try to decide whether Israel borrowed from some of the literature that was known to them. It is to be expected that the Israelites held many concepts and perspectives in common with the rest of the ancient world. This is far different from suggesting literature was borrowed or copied. This is not even a case of Israel being influenced by the peoples around them. Rather we simply recognize the common conceptual worldview that existed in ancient times. We should therefore not speak of Israel being influenced by that world—they were part of that world.”. Em tradução livre,

Como resultado, não estamos olhando para a literatura antiga para tentar decidir se Israel pegou emprestado alguma literatura que eles conheciam. É esperado que os israelitas tivessem muitos conceitos e perspectivas em comum com o resto do mundo antigo. Isso é muito diferente de sugerir que a literatura foi tomada emprestada ou copiada. Este nem é o caso de Israel sendo influenciado pelos povos ao seu redor. Ao invés disso, simplesmente reconhecemos que existia uma cosmovisão conceitual nos tempos antigos. Portanto, nós não devemos dizer que Israel estava sendo influenciado por aquele mundo: ele fazia parte daquele mundo.

Sendo repetitivo com intenção didática, resumindo: Israel não foi influenciado pelos povos do AOP, Israel é parte do mundo antigo. Para entendermos o “simples” texto de Gênesis, não basta fazermos tradução de palavras ou apenas ler no hebraico arcaico; é necessário entendermos a cultura e a literatura do AOP, encontrar os pontos em comum do pensamento desses povos com Israel e fazer uma tradução completa (cultura e linguagem).

Acho que temos muito material para se pensar até este momento. Apesar do texto ser muito curto, há muita reflexão a se fazer. O próximo passo, caso você tenha o livro The lost world of Genesis One é trabalhar o conceito de mito, mitologia e narrativa mítica. Aliás, já deixei sementes dessa reflexão justamente no início dessa coluna e nem adentrei: essa foi a intenção, caro leitor, apenas de preparar o terreno mental e, na próxima coluna dessa série As Origens delinearei exclusivamente sobre essa temática.

Não perca fé, você não perderá a salvação por pensar ou discutir esses temas de forma séria. A Bíblia ainda é a Palavra de Deus, inspirara e inerrante. O nosso trabalho aqui é apenas refletir e tirar mais proveito literário (afinal, a Bíblia é um sagrado livro).

A ti, ó Deus, glorificamos, a ti damos louvor, pois o teu nome está perto, as tuas maravilhas o declaram.

Salmos 75:1

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

  • O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, por John Walton, editora InterVasity Press. A série completa, The Lost World Series, pode ser vista no site https://www.ivpress.com/the-lost-world-series;
  • O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III e John Walton com contribuição de Stephen Moshier, editora Thomas Nelson Brasil;
  • O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, por John Walton, Victor Mathews e Mark Chavalas, editora Atos;
  • Biblia Hebraica Stuttgartensia 5ª ed: este é o texto, com aparato crítico (comentários sobre a composição, a partir dos manuscritos mais perto dos originais), do AT;
  • Torá: a lei de Moisés, edição bilíngue (hebraico e português), editora Sefer: este livro contém todo o Pentateuco, comentários e explicações (em rodapé), além de outros textos judaicos (como poemas e músicas).
Estela com a inscrição do código de Hamurabi, séc. XVIII a.C.
Fonte: https://www.britannica.com/topic/Code-of-Hammurabi
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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