Apocalipse moderno: o desejo de dar fim ao mundo
E, logo depois da aflição daqueles dias, o sol escurecerá, e a lua não dará a sua luz, e as estrelas cairão do céu, e as potências dos céus serão abaladas.
Mateus 24:29
No dia 26 de maio de 2021 a Terra passou por mais um fim. Aliás, o enésimo. Spoiler: não será o último. Todo ano mundo se acaba: essa série, por exemplo, explora algumas possibilidades de fim de todas as coisas. Claro, nada disso é real, mas a mentalidade humana de querer acabar com tudo parece que não tem fim.
A coluna de hoje será um pouco mais específica na questão da interpretação do evento eclipse. Já escrevi um texto sobre os eclipses solar e lunar na impossibilidade de ambos ocorrerem em um modelo de Terra plana. Também, fiz uma interpretação do evento da guerra entre Israel e os amorreus como sendo um eclipse solar em Josué 10. O que farei aqui é demonstrar como ocorrem os eclipses (que também já tem descrito nessa coluna) e puxar um pouco mais na questão interpretativa do Antigo Oriente Próximo (AOP). Claro, e o que tudo isso interfere na nossa leitura bíblica.
ECLIPSE
Eclipse é um fenômeno astronômico onde um corpo passa em frente a um outro em nossa linha de visão. Por exemplo, suponha que estou observando Ganímedes, uma das luas de Júpiter. De repente, na minha linha de visão, ela desaparece porque Júpiter “passou” em frente.
O evento real é que Ganímedes tem movimento de translação ao redor de Júpiter (análogo ao movimento da Terra ao redor do Sol). Agora, trazendo o fenômeno para o nosso cotidiano: há, basicamente, dois eclipses com o sistema Terra-Lua-Sol. O solar acontece quando a Lua passa em nossa linha de visão com o Sol, cobrindo o grande astro por algum tempo (podendo ser parcial ou total, escurecendo o dia).
Esta imagem anterior está muito bem esquematizada. Observe que há 2 sombras, uma mais escura (um pontinho no fim do cone que vem da Lua, umbra) e outra mais clara (penumbra). Na sombra chamada penumbra, ou seja, uma sombra mais fraca, o Sol fica parcialmente eclipsado pela Lua. Já na região sombra mais intensa (umbra), penumbra, o Sol é completamente escurecido. No eclipse lunar, há uma troca dos atores: a Terra faz sombra na Lua na fase cheia.
No final de maio de 2021, outros 2 fenômenos acompanharam o eclipse lunar e acho interessante citá-los também. Um deles é o chamado “superlua”: fenômeno puramente ótico onde a aparência da Lua (na sua fase cheia) fica maior. Para nós, meros observadores do satélite natural da Terra, a diferença a olho nu é muito pequena: ela fica cerca de 14% maior do que nas fases cheias normais. Isso é devido a uma aproximação maior da Lua com a Terra.
Na coluna sobre as leis de Kepler mencionei sobre o movimento dos planetas ao redor do Sol. Na realidade, as leis de Kepler valem para tudo o que se move no universo: planetas ao redor de estrelas, estrelas binárias e terciárias (estrelas que orbitam outras estrelas em uma espécie de dança descompassada devido ao seus tamanhos), estrelas transladando buracos negros, galáxias ao redor de outras galáxias etc. E, claro, as leis de Kepler também são aplicadas ao sistema Terra-Lua:
Observe que, de tempos em tempos, a Lua se aproxima da Terra: o ponto mais próximo é o perigeu. Se acontecer uma Lua cheia justamente nesse ponto mais perto da Terra (perigeu) temos o fenômeno de superlua.
Um último fenômeno que aconteceu junto com a superlua e o eclipse lunar no final de maio de 2021 é o conhecido “Lua de sangue”. Isso é apenas um fenômeno ótico: os raios do Sol, que ilumina a Lua cheia e são bloqueados (por causa do eclipse lunar), passam pela atmosfera da Terra, em um efeito parecido com prisma (ou os antigos CDs: arco-íris). Só que, os raios de luz que chegam na Lua são mais avermelhados: por quase a totalidade da luz solar está sendo bloqueada pela Terra no eclipse lunar, dá um efeito de “Lua de sangue”:
Resumindo: tivemos um eclipse lunar (quando a Terra bloqueia a luz do Sol na Lua), uma superlua (Lua cheia no ponto de maior aproximação com a Terra, no perigeu) e uma Lua de sangue (raios solares de frequência vermelha passando pela atmosfera da Terra e dando um efeito ótico na reflexão com a Lua). Tudo isso junto. E tudo isso mexendo no imaginário popular.
Antes de ver o fim do mundo moderno, vamos dar uma olhada no Antigo Oriente Próximo
ECLIPSE NO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO
Para os povos ao redor de Israel (povos do AOP), a ideia de eclipse era de uma revelação dos deuses como uma ameaça futura ao soberano. Por exemplo, aparecer um eclipse era uma mensagem clara que a vida do rei corria risco iminente e era o momento, inclusive de desejo dos deuses, de substituição. Trazendo o prof. de Antigo Testamento (AT), John Walton: “In this practice known mostly from second-millennium Hittite text and Neo-Assyrian (900 – 600) texts, the occurrence of omens that were thought to jeopardize the live of the king served as occasion for the enthronement of a substitute king. The threat was typically posed by an imminent eclipse of sun, moon, or one of the planets” (Livro Ancient Near Eastern thought and the Old Testament, cap. 3, sessão Ritual Texts, subsessão Substitute King (ebook)). Em tradução livre,
Nessa prática, conhecida principalmente por textos hititas do 2º milênio a.C. e textos neo-assírios (900 e 600 a.C.), a ocorrência de presságios que se pensava colocar em risco a vida do rei servia como ocasião para entronização de um novo rei substituto. A ameaça era tipicamente representada por um eclipse iminente do Sol, da Lua ou de um dos planetas
Em um outro trecho, do mesmo livro, Walton coloca algo bem perturbador: “An example of this whole procedure on the state level can be seen in the “substitute king ritual.” In this case omens, usually an eclipse, would indicate that the deity was displeased with the king.” (Livro Ancient Near Eastern thought and the Old Testament, cap. 6, sessão State Religion: what the gods want, subsessão Whims of the gods (ebook)). Fazendo uma tradução livre:
Um exemplo desse procedimento inteiro em nível de estado pode ser visto no “ritual de substituição do rei”. Neste caso, presságios, geralmente um eclipse, indicaria que a divindade estava descontente com o soberano
Ou seja, ver um eclipse (lunar ou solar), no mundo antigo, não era nada bom: sinal de coisa ruim iria acontecer com o líder soberano. E, mais do que isso: mexer com a vida do rei tinha repercussões em toda a sociedade. Só que, quem faria isso, por um sentimento de descontentamento, era o próprio deus daquele povo.
Apenas relembrando um pequeno detalhe: Israel fazia parte deste mesmo mundo antigo. Obviamente, a Palavra de Deus não foi copiada, sofreu influência ou qualquer coisa do tipo. Mas, Deus inspirou o escritor bíblico (e não fez com ele psicografia ou ditado celestial), em sua própria cultura, a escrever o que temos escrito.
Com isso em mente, veja o dia 4º da criação, em Gn 1. Lá o texto diz que Deus fez as estrelas. Isso é uma mudança de mentalidade gigantesca: as estrelas (que também inclui os planetas) são sinais do que os deuses do AOP faziam (vide a questão do eclipses). Para o Deus de Israel, esse tipo de astrologia não servia para coisa alguma: o mundo de cima era criação de Deus, o Criador não estava submetido a esses objetos e Sua ação era independente das forças astrológicas. Só que esse tipo de mudança de mentalidade não isenta Israel pensar que Deus agia por esses meios: Ele é explicito a dizer que manda a chuva (chuva é mandada por nuvens), por exemplo.
ECLIPSE ATUALMENTE
Nos nossos dias, onde a maioria das pessoas tem uma adoração à ciência (cristãos a veem apenas como ferramenta de Deus), a questão astrológica não é importante. Aliás, não deveria. Mesmo assim, em todo eclipse lunar ou solar, canso de ler em jornais de grande circulação nacional e internacional a “influência” dos astros em nossa vida amorosa, financeira, mental etc: e tudo separadinho por signos.
Se não bastasse todo esse besteirol que boa parte da mídia ainda abre precedente, no meio cristão (no nosso mesmo) aparece cidadãos com índole duvidosa colocando profecias bíblicas em laço com eventos cósmicos, como Lua de sangue, toque de trombetas, anjos avisando sobre a volta de Cristo e outras loucuras. Quero chamar a atenção justamente para esse ponto, o nosso meio “evangelístico apocalíptico”.
CONCLUSÃO
Escatologia bíblica é uma área de estudo da teologia. Mas, o que tem sido feito, dentro de especulações catastróficas, é uma maluquice sem lógica. Ok, não sou contra a especulação (gosto e faço muitas!) mas, colocar isso como derivação bíblica, profecia dos últimos dias etc beira a heresia, mesmo sendo “coisas futuras”.
É claro que não sou contra a nenhum tipo de pensamento ou “análise” bíblica, por mais errônea e sem fundamentação exegética possa ser; cada um é livre para pensar e defender o que quiser. Mas, influenciar outros cristãos a esse tipo de pensamento quase herético, sem fundamentação bíblica e com intuito de assombrar pessoas, ao meu ver, é pecado.
Por isso que ver o AOP é importante, pois lá entendemos como eles e Israel viam a questão dos eclipses. E é de lá que entendemos o motivo de vários textos bíblicos terem a estrutura literária como tem. Fazendo uma exegese decente, entenderemos que o texto não é literal no sentido ao pé da letra, mas tem ensinamentos corretos que Deus quis revelar (hermenêutica bíblica).
E desde a hora sexta houve trevas sobre toda a terra, até à hora nona.
Mateus 27:45
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Sugestão de leitura
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Ancient Near Eastern thought and the Old Testament: introducing the conceptual world of the Hebrew Bible, por John Walton, editora Baker Academic;
- Anciente Israelite literature in its cultural context: a survey of parallels between biblical and Ancient Near Eastern texts, por John Walton, editora Zodervan Publishing House;
- The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, por John Walton, editora InterVasity Press. A série completa, The Lost World Series, pode ser vista no site https://www.ivpress.com/the-lost-world-series;
- O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III e John Walton com contribuição de Stephen Moshier, editora Thomas Nelson Brasil;
- O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Como Ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova;
- Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por Andre Daniel Reinke, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com o BT Books. Livro simplesmente essencial para o entendimento, de forma panorâmica, dos povos do AOP;
- Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, por John Walton, Victor Mathews e Mark Chavalas, editora Atos.