A lenda do conflito entre ciência e fé cristã
Eu fiz a terra, e criei nela o homem; eu o fiz; as minhas mãos estenderam os céus, e a todos os seus exércitos dei as minhas ordens.
Isaías 45:12
A coluna de hoje será mais uma reflexão que gostaria de compartilhar com você: a impossibilidade de ter conflito entre ciência e fé cristã (que é o meu caso) quando o assunto é origens. Essa coluna fará parte de uma intersecção de algumas séries: Visões cristãs sobre as origens, As Origens, Ciência e Fé Cristã e até, em certa parte, da série Cosmologia. Só que essa reflexão é a partir da minha própria história ou a partir daquilo que já estudei dentro da Física; algo mais prático.
Você já conhece a minha história, principalmente se você já é leitor há mais tempo ou se já leu todas as colunas que produzi. Em resumo: sou cristão há quase 29 anos (idade é um pouquinho a mais); Físico (graduação, mestrado e doutorado) há muito tempo, iniciando os estudos em 2006. Ou seja, tenho mais tempo de caminhada na fé (inclusive fazendo cursos básico, médio e superior em teologia) do que de cientista. E nunca tive problema, ao contrário de várias pessoas que conheci, ajudei e dou apoio sempre que é preciso: conciliar minha fé com a ciência.
Observe bem o que coloquei anteriormente. Isso é completamente diferente de dizer que sei todas as respostas, que tudo está resolvido dentro de todos os textos bíblicos ou que tenho os “revelamentos” especiais divinos olhando para a ciência. O que não tenho problema é de ler o livro da natureza, escrito pelo Criador Supremo, e ler o livro das Escrituras, Palavra de Deus, ao mesmo tempo. O ponto é que não vejo conflito entre esses dois livros: são obras do mesmo Autor. Agora, se eu entendo perfeitamente cada passagem desses dois livros, a resposta é um óbvio não, mas sem descaracterizar a fé que tenho em Deus.
Uma forma fácil, você poderia pensar, de finalizar a tese que propus (a impossibilidade do conflito entre ciência e fé cristã) é apresentando passagens bíblicas que demonstram erro na ciência ou eventos cósmicos que “desmentem” a Bíblia. Isso é bem simples de resolver: não há ciência sendo ensinada na Bíblia e não há teologização da ciência. Nessas 2 colunas anteriores, linkadas, trabalhei com essas ideias concordistas, ou seja, “amarretadas” argumentativas para provar ou “desprovar” a Bíblia em diversos aspectos. Estou colocando tudo no mesmo balaio porque não dá para conflitar o texto sagrado com a narrativa científica e vice versa: são estruturas diferentes. Tem uma lista de exemplos que poderia dar desse aparente conflito: Sol e Lua pararam em uma batalha na época de Josué, relógio de Acaz retrocedendo (ainda escreverei sobre esse fenômeno), estrela parando sobre a casa de Jesus quando ele nasceu, abertura do mar Vermelho (ainda escreverei sobre) etc. Só que todos esses exemplos apenas demonstram a estrutura literária e o rio cultural onde o escritor vivia.
Essa questão de milagre seria uma outra bala de prata para iniciar o conflito entre ciência e fé cristã. Afinal, Jesus andou sobre as águas (Pedro também), Cristo ressuscitou (e isso é pilar central do cristianismo), Josué e Israel atravessaram o rio Jordão etc. Esses exemplos, que são numerosos e, ao meu ver, vários são muito difíceis para construção de modelos, não invalidam Deus como Autor do livro da natureza (que é lido com algumas lentes da ciência). Se nós não entendemos como essas coisas aconteceram, fisicamente falando, o problema é nosso: vamos estudar e trabalhar mais.
Isso indica que todas as passagens bíblicas onde vemos milagres (definição de Hume: quebra de leis físicas) são explicadas cientificamente? Claro que não! Muita coisa ainda não sabemos e os modelos que propomos para explicar tal evento é, por definição, um modelo: uma construção argumentativa estruturada em possibilidades físicas. Se tal fenômeno visto e descrito pelo escritor original em seu contexto quer dizer exatamente o que expliquei, cientificamente, só saberemos quando estivermos com Deus. Mas, isso não descarta a possibilidade mais simples. Inclusive, na física trabalhamos com o que é “minimamente” possível, a natureza não faz gastos desnecessários (tecnicamente: os sistemas físicos sempre trabalham no menor valor de energia possível e sem desperdício de energia).
Para finalizar, uma outra estaca no coração da compatibilidade entre ciência e fé cristã, que é o mais tradicional problema apresentado por ateus e, pasme, por milhares de cristãos, é a “perseguição que a igreja fez contra cientistas que queriam e tentaram ensinar ciência”. E o melhor é puxam da história para fazer esse tipo de afirmação! O tradicional exemplo é de Galileu que “foi enforcado / queimado / exilado por ensinar que a Terra é redonda e que gira em torno do Sol”. Há várias vertentes dessa lenda (história inventada). Ainda farei um texto mais detalhado sobre esse tema aqui no CosmoTeo, mas deixarei nas referências bibliográficas 2 livros que detalham esse episódio (um do McGrath e outro do Numbers). Dando um pequeno spoiler: Galileu não foi condenado por ensinar ciência; sua condenação foi, em outras palavras, por problemas teológicos, porque ele abria possibilidade de interpretação bíblica com outra fonte exegética (da ciência) e não do clero; análogo ao que os protestantes tinham feito quase 100 anos antes na reforma de Lutero.
Essa questão histórica (igreja perseguindo cientistas) é difundida por 2 escritores no final do séc. XIX: Draper e White. Eles publicaram 3 livros: History of the conflict between religion and science (Draper, 1 vol) e A history of the warfare of science with theology in Christendom (White, 2 vols); não tem versão em português e é simples de se conseguir e ler essas obras. Ainda falarei um pouco mais sobre esses trabalhos, mas o resumo é: são livros de história que narram o conflito entre a ciência e a religião (o foco deles é o cristianismo) ao longo de todo o desenvolvimento da igreja. Pelo título e lendo o que eles escrevem, você fica mais do que convencido de que a igreja perseguiu cientistas, foi pedra de tropeço, atrapalhou o desenvolvimento cientifico e, sem ela, hoje estaríamos morando em Marte e fazendo turismo planetário. Mas, o que eles fazem, se consciente ou inconscientemente, é não mostrar os documentos históricos que comprovam o que dizem. O White até cita uns livros (busquei as fontes que ele cita, em italiano, sobre alguns eventos históricos), mas tudo sem embasamento em documentos. Afinal, os 2 estão narrando eventos históricos passados; nada mais elementar, dentro da ciência, apresentar as evidencias do que está se narrando (seja história ou qualquer outra ciência). Só que, no caso do Draper não há nota de rodapé, citação de documento ou fotocópia para comprovação do que é relatado. White cita alguns livros que são desconexos. Ou seja, os 2 fizeram aquilo que chamamos de fake news.
Se fosse apenas isso (ausência de documentos históricos), seria fácil resolver: só pesquisarmos os documentos da condenação de Galileu, compararmos os desenvolvimentos científicos e tecnológicos durante a Idade Média etc. E é justamente ai que a situação do Draper e White fica mais complicada: os documentos e os desenvolvimentos mostram que a igreja não condenou cientistas e que ela ajudou, de diversas formas, o desenvolvimento da ciência. Há uma tese, em ampla discussão, de que sem a igreja não teríamos ciência como temos; a discussão é contrafactual (se isso não tivesse acontecido, o que teria ocorrido?), mas o fato é que a igreja foi primordial no desenvolvimento da ciência. Por exemplo, na fundação das primeiras universidades no mundo: locais que eram “puxadinhos” da igreja.
Essa é a reflexão de hoje: não há e nunca houve conflito entre ciência e fé cristã. O conflito, se existe, é em âmbito da interpretação humana, ou seja, dentro de cada pessoa. Afinal, Deus é o mesmo Autor do livro da natureza e do livro sagrado; não pode ter conflito entre 2 livros escritos pela mesma Pessoa Perfeita. Por outro lado, ciência e teologia, os métodos de interpretação desses 2 livros, são ferramentas humanas. E, como ferramentas humanas, estão sujeitas a erros humanos, seja na teologia ou na ciência (ou nas 2!). Todas as respostas, graças ao Bom Deus, não temos: isso nos dá possibilidades de trabalhar e estudar muito mais a Sua Palavra e a Sua criação.
Acredito que Deus não diria algo sobre a Bíblia que contradissesse o que Ele revela por meio do mundo criado. O conflito ocorre no âmbito da interpretação humana. Podemos estar errados em nossa interpretação da Bíblia ou errados em nossa interpretação científica da natureza (ou em ambos!).
Livro O teste da fé: os cientistas também creem, p. 143
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Sugestão de leitura
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Livro Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião organizado por Ronald Numbers, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Um pouco mais de história sobre a relação entre ciência e fé cristã pode ser encontrada no livro Fundamentos do diálogo entre ciência e religião por Alister McGrath, editora Edições Loyola. Uma nova edição, ampliada, desse mesmo livro é Ciência e religião: fundamentos para o diálogo, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Outro livro muito bom sobre essa parte histórica é Ciência e religião organizado por Peter Harrison, editora Ideias & Letras;
- Outra obra muito boa sobre esse tema é Os territórios da ciência e da religião por Peter Harrison, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- No site da ABC2 há muito material (artigos e vídeos no YouTube) sobre o relacionamento entre ciência e fé cristã: http://cristaosnaciencia.org.br/;
- Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, por John Walton, Victor Mathews e Mark Chavalas, editora Atos.