As Origens: mitologia no texto bíblico?
Contemplas agora o beemote, que eu fiz contigo, que come a erva como o boi.
Jó 40:15
A coluna de hoje estará focada na definição da expressão mito / mitologia. Na coluna passada dei algumas bases mais literárias e que, implicitamente, falei sobre uma tradução sobre cultura. Mas, parece que ficou meio vago, não? Comecei no segundo parágrafo com algumas perguntas até provocativas, como: há uma mitologia bíblica? Na Bíblia há mito(s)? Há narrativas míticas no texto sagrado? O livro inspirado por Deus contém alguma porção de literatura mítica em seu conteúdo? E onde estão as respostas no texto anterior?
Como sempre faço, não quero te cansar, caro leitor, em textos muito longos. O que fiz, na coluna anterior, foi uma preparação para a coluna de hoje. Apenas relembrando, em poucas palavras, o que coloquei anteriormente: para uma boa leitura, compreensão e até tradução de um texto antigo, como Gênesis (o nosso foco, aqui na série As Origens, é justamente em Gênesis), é necessária uma tradução da cultura. Olhar o texto, fazer uma tradução de palavras e gramática do hebraico não funciona muito bem, ainda mais considerando que o idioma não existe atualmente devido a mudanças (hebraico arcaico, do texto de Gênesis, é diferente do hebraico moderno. Algumas coisas podem ser semelhantes). Essa dificuldade é facilmente vista em tradução de expressões do inglês para o português, hoje em dia. Então, partimos para a tradução da cultura.
Traduzir uma cultura tão antiga (considero, aqui: hebraico arcaico, Oriente Médio no séc. XV a.C.) para a nossa (português, ocidente, Brasil, séc. XX) não é uma tarefa fácil. Para começarmos, depois de entendido a questão linguística (que não é nada simples), é necessária uma imersão na cultura da época por meio da literatura do Antigo Oriente Próximo (AOP): é o que temos de mais terreno comum entre Israel e os povos do AOP, como egípcios, sumérios, dentre outros. A receita, finalizando o resumo, é comparar o Antigo Testamento (AT) com a literatura do AOP e ver os pontos de contato em comum dentro da cultura. Como o próprio John Walton coloca, no livro base que estou utilizando (The lost world of Genesis one; estará nas sugestões de leitura), Israel não é influenciado por outros povos; ele faz parte do mesmo mundo antigo. Todo esse trabalho hercúleo (gigantesco, quase infinito e sobre-humano) é preciso porque “The Old testament does communicate to us and it was written for us, and for all humankind. But it was not written to us. It was written to Israel” ou, fazendo uma tradução livre dessa frase que se encontra na pág. 6,
O AT nos comunica que foi escrito para nós e para toda a humanidade. Mas ele não foi escrito com destino a nós. Ele foi destinado a Israel.
Agora, vamos ao que interessa. Acho que até você, caro leitor do CosmoTeo, está com uma curiosidade de gato: a Bíblia tem ou não tem mito?! Vou começar a responder essa pergunta considerando tudo o que já vimos até agora: os prolegômenos (aquilo que devemos saber de antemão), o rio cultural que permeia todo o AOP, incluindo Israel e as questões de literatura relacionados a cultura do AOP https://horadeberear.com.br/2021/05/01/as-origens-entendimento-cultural-no-antigo-oriente-proximo/. Com isso tudo em mente, vamos lembrar que o texto que Moisés está começando a escrever, Gênesis cap. 1, é um texto inspirado por Deus. Isso significa que Deus está inspirando Moisés a escrever o que temos em Gn 1; em outras palavras, a inspiração de Deus em Moisés é uma revelação especial (de Deus) através de um texto escrito, mas com elementos culturais onde Moisés (remetente original do texto) e Israel (destinatário original) estão imersos.
Vou abrir um pouco mais esse ponto sobre a inspiração. Deus inspirar Moisés significa que Moisés escreveu Gn 1 através da atuação do Criador nele (Moisés). Só que Moisés escreveu o texto de Gn 1 em seu idioma próprio (hebraico arcaico). Ele (Moisés) escreveu esse texto para Israel que falava / entendia o mesmo idioma (hebraico arcaico). Tanto Moisés como Israel estão imersos no mesmo rio cultural do AOP. Em outras palavras, o formato literário de Gn 1, que Moisés escreveu e que Israel leu e entendeu, está ajustado de tal forma que toda a literatura do AOP tem algumas coisas em comum com o texto bíblico.
Um cuidado extremo com essa última frase. Ter elementos literários que são comuns tanto ao texto bíblico quanto a outras obras do AOP não significa cópia, tradução de obras ou influência. Significa exatamente o que é: a forma de pensar, culturalmente e que é expresso na literatura, é semelhante a todo o AOP porque Israel e os povos do AOP estão vivendo no mesmo mundo antigo. Ninguém copia de ninguém ou alguém influencia alguém; todo mundo está morando no mesmo planeta e no mesmo rio cultural.
Se precisar, pare um pouco, reflita, releia esses parágrafos. Sim, parece até que estou abusando da figura de linguagem pleonasmo, mas é de forma intencional e para não dar margem a outro tipo de interpretação que eu, em minha pouca expressão em português (afinal, sou um físico teórico que trabalho com equações) possa transparecer.
Um passo adiante. Todo mundo está morando no mesmo mundo antigo. E a forma de verificar o funcionamento desse mundo antigo é através da ação das divindades. Lembre-se: não há ciência aqui, deuses e homens convivem juntos, há intervenções de uns com os outros. Um instante: qual nome desse tipo de relação literária entre deuses e homens, entre divindades e humanidade, entre a ação divina (que poderíamos chamar, anacronicamente (colocar nossa época em outra época), de forças da natureza) e mundo físico? Mito!
Uma explicação óbvia para nós, cristãos: o nosso Deus bíblico, Criador e Sustentador de toda a natureza, é completamente diferente dos deuses das culturas do AOP (como egípcios, sumérios etc). Por outro lado, se um israelita dessa época lesse um texto mítico qualquer, ele entenderia perfeitamente o que o texto queria colocar. Exemplo prático: leia 1 Reis 18. Elias faz uma provocação aos profetas do deus Baal. Claramente, quem estava assistindo ao desafio entendia quem era Baal na cultura dos cananeus e compreendia, de forma perfeita, o que Elias estava propondo. Há alguma semelhança entre as divindades Deus e Baal, em questão de mundo físico? Não, Baal não existe. Mas, na narrativa mítica dos cananeus, Baal era um outro deus, talvez até com poder para rivalizar com o Deus de Israel. Um outro exemplo prático: Êx 20:3. O texto é explicito no sentido de que Deus está dizendo ao povo para não ter outros deuses diante dEle. Mas, há alguma negação cultural da existência de outros deuses. Claro que não; afinal, Israel estava indo tomar posse de uma terra que tinha um panteão (diversos) de deuses. Ou seja, de forma cultural e que é expresso na literatura, Israel entendia como Deus “funcionava” e isso podemos ver na questão de similaridades literárias culturais entre Israel e os povos do AOP. Mais do que isso: livro de Juízes e até o AT inteiro vemos Israel se desviando de Deus e caindo nos braços dos outros deuses, de forma cultual, religiosa e cultural.
Essa é a parte prática do mito. A definição, tomarei novamente do prof. John Walton em uma citação direta na pág. 12 do livro The lost world of Genesis one: “The Canaanites or the Assyrians did not consider their myths to be made up works of the imagination. Mythology by its nature seeks to explain how the world works and how it came to work that way, and therefore includes a culture’s “theory of origins.” We sometimes label certain literature as “myth” because we do not believe that the world works that way. The label is a way of holding it at arm’s length so as to clarify that we do not share that belief — particularly as it refers to involvement and activities of the gods. But for the people to whom that mythology belonged, it was a real description of deep beliefs. Their “mythology” expressed their beliefs concerning what made the world what it was; it expressed their theories of origins and of how their world worked” ou, destacando em uma tradução livre:
Os cananeus ou os assírios não consideravam seus mitos como obras da imaginação. Mitologia, por sua natureza, procura explicar como o mundo funciona e como veio a funcionar dessa forma e, portanto, inclui uma “teoria das origens” da cultura. Às vezes rotulamos determinada literatura de “mito” porque não acreditamos que o mundo funcione dessa forma. O rótulo é uma forma de segurá-lo com o braço esticado para esclarecer que não compartilhamos essa crença: particularmente no que se refere ao envolvimento e atividades dos deuses. Mas para as pessoas a quem essa mitologia pertencia era uma descrição real de crenças profundas. Sua “mitologia” expressava suas crenças sobre o que tornava o mundo o que ele era; expressava suas teorias de origens e de como seu mundo funcionava.
Vou tomar uma outra citação direta do Walton, na mesma pág. do mesmo livro: “For the Israelites, Genesis 1 offered explanations of their view of origins and operations, in the same way that mythologies served in the rest of the ancient world and that science serves our Western culture. It represents what the Israelites truly believed about how the world got to be how it is and how it works, though it is not presented as their own ideas, but as revelation from God. The fact that many people today share that biblical belief makes the term mythology unpalatable, but it should nevertheless be recognized that Genesis 1 serves the similar function of offering an explanation of origins and how the world operated, not only for Israel, but for people today who put their faith in the Bible” e, fazendo uma tradução livre:
Para os israelitas, Gênesis 1 ofereceu explicações de sua visão das origens e operações da mesma forma que as mitologias serviram no resto do mundo antigo e que a ciência serve à nossa cultura ocidental. Representa o que os israelitas realmente acreditavam sobre como o mundo veio a existir, como é e como funciona, embora não seja apresentado como ideias próprias, mas como revelação de Deus. O fato de que muitas pessoas hoje compartilham essa crença bíblica torna o termo mitologia intragável, mas deve-se reconhecer, no entanto, que Gênesis 1 tem a função semelhante de oferecer uma explicação das origens e como o mundo funcionava, não apenas para Israel, mas para as pessoas de hoje que colocam sua fé na Bíblia.
Farei uma tarefa quase impossível e com riscos de não ser completamente entendido: mito significa, resumidamente, uma narrativa para dar sentido ao mundo, desde o seu nascimento até seu atual funcionamento. Em momento algum é papel do mito dizer o funcionamento científico da natureza. Ou seja, nem os povos do AOP e nem Israel, em suas concepções mitológicas, entendiam o funcionamento do mundo como algo em processos físicos. Nós, ocidentais, é que queremos saber como o mundo veio a existir, como ele funciona em detalhes físicos, cosmológicos, astronômicos etc. Israel & Cia não tinham o menor interesse em saber sobre isso porque a narrativa mítica não traz ideias sobre funcionamento físico das coisas; apenas sentido e objetivo.
Acho que agora dei um salto grande; vou embasar melhor isso. Na definição de Walton sobre mito (releia as citações, preferencialmente no inglês), o que encontramos é sentido e objetivo das coisas surgirem (pela ótica de funcionalidade) e funcionarem do jeito que estão. Apenas isso. Ou seja, Israel & Cia (povos do AOP) não tinham a mesma mentalidade científica que temos: não queriam saber sobre a origem do universo, Big Bang, se Deus criou a Terra em 7 dias de 24 horas contados em relógio analógico ou digital, se a seleção natural deu origem a todas a diversidade de vida. Nada disso está na cultura do AOP e Israel: o que eles entendem é narrativa mítica, histórias que dão sentido ao seu mundo, o funcionamento e a funcionalidade dele para a sociedade. Qualquer coisa diferente disso é nossa visão moderna sendo forçada ao texto bíblico e isso, como vimos na coluna anterior não é um caminho correto para uma tradução cultural.
Outro copo d’água, respira fundo, reflita tudo isso até agora. Depois de tudo isso, acho que ficou claro as respostas (ou pelo menos o caminho a elas) das perguntas lá no início: há uma mitologia bíblica? Na Bíblia há mito(s)? Há narrativas míticas no texto sagrado? O livro inspirado por Deus contém alguma porção de literatura mítica em seu conteúdo? Serei extremamente cuidadoso com elas e o que direi é: reflita e pense mais sobre esses pontos que coloquei hoje, sobre rio cultural e sobre literatura do AOP. Para simplificar, resumirei todas essas perguntas em uma: faz sentido pensar no texto de Gênesis (nos locais onde ele fala sobre origens do universo, da Terra e do homem) como uma narrativa mítica inspirada por Deus, destinada a Israel e escrita para nós?
Oh! quanto amo a tua lei! É a minha meditação em todo o dia.
Salmos 119:97
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Sugestão de leitura
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, por John Walton, editora InterVasity Press. A série completa, The Lost World Series, pode ser vista no site https://www.ivpress.com/the-lost-world-series;
- O mundo perdido do dilúvio: teologia, mitologia e o debate sobre os dias que abalaram a Terra, por Tremper Longman III e John Walton com contribuição de Stephen Moshier, editora Thomas Nelson Brasil;
- O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Como Ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova;
- Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por Andre Daniel Reinke, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com o BT Books. Livro simplesmente essencial para o entendimento, de forma panorâmica, dos povos do AOP;
- Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, por John Walton, Victor Mathews e Mark Chavalas, editora Atos;
- Biblia Hebraica Stuttgartensia 5ª ed: este é o texto, com aparato crítico (comentários sobre a composição, a partir dos manuscritos mais perto dos originais), do AT;
- Torá: a lei de Moisés, edição bilíngue (hebraico e português), editora Sefer: este livro contém todo o Pentateuco, comentários e explicações (em rodapé), além de outros textos judaicos (como poemas e músicas).