As origens do homem: o criar no mundo antigo e no AT
No princípio criou Deus o céu e a terra.
Gênesis 1:1
A coluna de hoje é continuação da série As Origens do homem. Na proposição 2, que é o tema desse texto, o cerne é a discussão da expressão criar com a visão do escritor original de Gn que está dentro do Antigo Oriente Próximo.
Relembrando alguns pontos da coluna anterior. Interpretação bíblica (exegese) tem que ser feita de forma coerente, dentro do rio cultural, saber como funciona o mundo de Moisés e, com isso, entender o motivo que ele escreveu o texto de Gn. Para entendermos mais sobre o livro sagrado é necessário entender a cultura ao redor; para tal, a literatura desses povos é o discriminante. Então, ler o texto de Gn de forma literal (ao pé da letra) não ajuda, só atrapalha e faz uma bagunça exegética, teológica e mental gigantesca.
O motivo é simples: tome a palavra criar, no português. Quando lemos em Gn 1:1 que Deus criou o céu e a terra, intuitivamente a gente pensa: antes de Deus criar as coisas, existia o nada; depois que Ele criou as coisas, tudo existe. Ou seja, a palavra criar, que entendemos, é uma transição da não existência para a existência. Só que isso não está no texto bíblico.
Pensar em criação, criar, é ter em mente a criação do nada de matéria, espaço e tempo. É quase que uma cosmologia quântica (ainda trabalharei esse tema): antes do início do universo tinha o nada absoluto (sem matéria, sem espaço e sem tempo); com processos quântico-cosmológicos, o universo nasce, criando matéria, espaço e tempo. Mas esse tipo de raciocínio científico não existe no mundo antigo e nem na mentalidade israelita.
A mentalidade dos povos do AOP (e isso inclui Israel) é que tudo é criado a partir de matéria pré-existente. Ou seja, não há uma criação do nada (ex nihilo) como aprendemos na teologia modernamente (doutrina cristã da criação ex nihilo, que diz que Deus criou todas as coisas do nada absoluto). Os povos ao redor de Israel tinham, em suas mitologias, que a natureza advém da ação dos deuses. E os deuses emergem de alguma coisa que já existe: águas infinitas (do Nilo, no caso do Egito) ou algum outro tipo de matéria caótica. Em resumo, no AOP a criação é uma espécie de organização de algo que já existe.
Antes de continuar, um detalhe importante. A forma como o mundo antigo pensava sobre a criação (de algo pré-existente) não significa que nós, cristãos, devemos acreditar nisso. É óbvio, para nós, que Deus criou todas as coisas ex nihilo: antes, não existia coisa alguma, depois tudo é criado por Deus. É óbvio, também, que a matéria ou a natureza não é eterna, pois isso é um atributo apenas e exclusivo de Deus. O que temos certeza, olhando apenas pela Bíblia, é que a natureza tem um começo: antes, não havia espaço físico, tempo físico e matéria física; Deus cria tudo isso em algum momento no passado. E isso vai ao encontro com o que aprendemos na cosmologia.
Um ponto interessante a se observar no texto de Gn 1 é que no verso 1 dá uma ideia de introdução ou “título” a narrativa que será exposta no restante do capítulo. No verso 2 há um outro detalhe que não pode ser deixado de lado: sem forma e vazia. Essa é a condição ou o estado que a Terra se encontra no momento da criação. Observe bem que não há indicação, na literatura bíblica, de que Deus criou a Terra por tal ou tal processo; apenas que ele criou tudo (verso 1 é como se fosse uma introdução ao que vai acontecer) e a Terra aparece, no verso 2, como já existente e nessa situação.
As palavras tohu e wabohu, que são traduzidas como sem forma e vazia, dão uma ideia de terra selvagem ou desolada, região com resultado de destruição, algo (lugar) que não tem propósito ou significado. E essas definições ou traduções são feitas ao se comparar essas 2 palavras com diversas outras no AT (Walton cita algumas passagens). Podemos entender, de forma geral, que sem forma e vazia, o estado da Terra em seu momento criacional a partir de matéria pré-existente, significa algo sem ordem e sem função. Resumindo com uma citação de Walton na pág. 27:
Agora se torna claro que a condição inicial em Gênesis 1:2, a pré-criação que descreve a não existência, é a condição em que há carência não de matéria, mas de ordem e de propósito.
É como se a Terra fosse criada, de matéria pré-existente (esse é o pensamento dos povos do AOP) e, em Gn 1:2 começa a contar a história dessa Terra em seu estado atual: não tem ordem (mas tem matéria) e, em termos de propósito, ela está sem função. Isso acontece com os mitos egípcios, sumérios e babilônios: para eles, o caos primordial (que não tem nada a ver com coisa ruim) dá origem aos deuses; essa é a “função” do caos, que é um estado de desorganização.
Indo um pouco mais além, observe as palavras bara e asâ (não estou escrevendo o transliterado hebraico direitinho para efeitos de simplificação. Vide na Torah o texto em hebraico exato). bara está traduzido, para nós, como criar, e asâ como fazer. Em inglês há outras palavras, mas vou me deter nessa diferenciação, em português, para simplificar. No hebraico, criar tem o sentido de produzir ordem, organizar, arrumar. Já o verbo fazer tem o significado de manipular algo, fazer manufatura de uma matéria afim de produzir um outro objeto. Esses são os sentidos das palavras bara e asâ que está no texto de Gn. Aliás, no AT inteiro essas palavras são usadas com essas intenções, mesmo que em algumas passagens não seja tão claro assim. De qualquer forma, nenhuma passagem, nem em Gn, essas 2 palavras tem o sentido de criar / fazer algo do nada ou criar / fazer coisas materiais: o sentido, dessas palavras, está relacionado com dar função ao que já existe, organizar algo que está em um estado desorganizado para ter um propósito.
Um exemplo, diferente do que Walton dá no texto. Pegue um minério de ferro. Ferro já existe na Terra. Só que esse minério não tem utilidade alguma: o que faço com 500 g de ferro em estado desorganizado (minério)? Nada. Agora, pego esses 500 g, manipulo, aqueço, coloco em forma, passo um esmeril, faço um tratamento químico e físico. Depois de tudo isso, tenho em mãos uma belíssima faca, afiada, com a função de cortar alimentos. O minério de ferro, que já existia (pré-existente para mim), agora tem uma função depois de um processo de transformação de seu estado inicial (caos) para um estado de propósito (cortar alimentos). Com a Terra, a ideia é a mesma.
Mas, e a ideia de ex nihilo? Não se perde? Não. Walton mesmo vai deixar isso explicito na pág. 31:
Gênesis 1 não é um relato de origens materiais, portanto ex nihilo não se aplica. Por favor, note, entretanto, que quando Deus criou o cosmos material (e foi Ele quem o fez), Ele o fez ex nihilo. Essa doutrina vem de João 1:3 e de Colossenses 1:16, não de Gênesis 1.
O ex nihilo, a partir do nada, é o que Deus fez, associando essa ideia com Jo 1:3, Cl 1:16, mas não com Gn 1. E isso se dá porque os povos antigos não tinham esse conceito como nós temos. E para eles não havia interesse em saber sobre as origens matérias, e sim, as origens funcionais, a função disso na sociedade, o propósito daquilo dentro de uma utilidade. Na pág. 32, Walton coloca:
Cosmologias antigas tinham pouco interesse em origens materiais, embora reconheçam que o cosmos material é aquilo que é ordenado de tal forma que suas funções possam ser desempenhadas.
Em resumo, Gn 1 fala sobre a organização, a partir do caos primordial (sem forma e vazia), de todo o cosmos. Lembre-se que o universo inteiro é a Terra plana, com um domo sólido e comportas; esse é o pensamento de todos os povos do AOP, incluindo o escritor de Gn. Mas, qual motivo de organizar tudo isso? No restante do livro, Walton coloca uma hipótese muito interessante, que é a de organizar o espaço sagrado. Essa é uma ideia infundida em todas as cosmogonias: um espaço sagrado (templo) onde as divindades habitavam e se comunicavam com a humanidade através de um representante (sacerdote). A ideia de Gn 1 vai por esse caminho. Na pág. 32 Walton faz todo esse resumo de forma explicita:
Concluindo, o conceito de que Gênesis 1 diz respeito ao estabelecimento da ordem carrega consigo duas ideias corolárias […]. Primeiro, em termos bíblicos, a ordem é relacionada ao espaço sagrado. O espaço sagrado é o centro da ordem, na medida em que Deus é a fonte da ordem. Portanto, quando falamos sobre o estabelecimento da ordem, estamos, de fato, falando sobre o estabelecimento de um espaço sagrado.
Segundo, devemos manter em mente que toda essa discussão está estabelecendo o foco real deste livro: a questão das origens humanas. Assim como estamos descobrindo que o relato da origem cósmica é menos material do que poderíamos pensar de nossa leitura de Gênesis 1, vamos também descobrir que a discussão das origens humanas tem menos interesse no material do que, talvez, pensássemos.
Então, a criação de Deus, em Gn 1, é algo no sentido de organização de uma matéria pré-existente com a ideia de arrumar, do caos primordial, um espaço sagrado. E não há menção sobre a questão da origem material do cosmo (cosmologia, Big Bang etc) e, obviamente, sobre a origem biológica do homem.
Sim, eu sei que isso pode assustar em uma primeira vista, principalmente se você nunca leu algum material do Walton. Não se preocupe, a minha função, aqui no CosmoTeo, é entender esse pensamento, dirimir e te apresentar na forma mais palatável possível a você. Então, não perca a fé, não se desvie, fique firme, continue lendo a Bíblia como Palavra de Deus, inspirada e inerrante, e defina heresia por algo como esse tipo de exegese.
Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.
Sugestão de leitura
- Para ter um entendimento melhor sobre teoria da evolução, um bom livro em português é Evolução, por Mark Ridley, 3a ed, editora Artmed;
- O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Série de livros The lost world series: The lost world of Adam e Eve (acima tem a edição em português), The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debate, The lost world of Scripture: ancient literary culture and biblical authority, The lost world of israelite conquest: covenant, retribution, and the fate of canaanites, The lost world of the flood (acima tem a edição em português) e The lost world of the Torah: law as covenant and wisdom in acnient contexto. Todos esses livros dessa série podem ser vistos no site da editora InterVarsity Press https://www.ivpress.com/the-lost-world-series. Recomendo fortemente essa série, que é escrita por John Walton e vários outros colaboradores.
- O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
- Como ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova. Um excelente livro, bastante simples e nada técnico;
- Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por André Reinke, editora Thomas Nelson Brasil. Um bom livro que mostra muitos detalhes históricos e culturais dos povos do AOP;
- Dissertação A “influência do mito babilônico da criação, Enuma Elish, em Gênesis 1,1 – 2,4a. É um interessante trabalho feito por Antonio Ivemar da Silva Pontes e que está disponível em http://tede2.unicap.br:8080/bitstream/tede/886/2/dissertacao_antonio_ivemar.pdf;
- Biblia Hebraica Stuttgartensia 5ª ed: este é o texto, com aparato crítico (comentários sobre a composição, a partir dos manuscritos mais perto dos originais), do AT;
- Torá: a lei de Moisés, edição bilíngue (hebraico e português), editora Sefer: este livro contém todo o Pentateuco, comentários e explicações (em rodapé), além de outros textos judaicos (como poemas e músicas).