As origens do homem: Gênesis é um documento antigo

Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor.

Isaías 55:8

A coluna de hoje está baseada no capítulo 1 do livro O mundo perdido de Adão e Eva do John Walton. Aliás, proposição: Walton escreve esse (e vários outros livros) em uma estrutura de proposições, encadeadas, enumeradas e sequenciadas, até a construção final da tese que rege o livro. Já falei sobre essa temática que ele aborda, de forma diluída, em outras colunas na série As Origens, mas aqui farei uma espécie de concentrado, aproveitando ao máximo as ideias do Walton e outros pontos já tratados.

A forma tradicional de tratar o livro de Gn é de saber quem é o autor, tema, destinatário etc. Já escrevi uma coluna sobre esses pontos. E é importante saber isso porque é fundamental para uma exegese bíblica. Além do mais, a Bíblia é Palavra de Deus e, como tal, tem autoridade divina. Isso implica, dentre outras coisas, que a revelação do Criador está exposta em seu texto: Deus se revela como Pessoa, de forma relacional e escrita. E, para entendermos muito bem como é essa revelação, é necessário a exegese bíblica. Voltamos ao mesmo ponto de sempre: entender o rio cultural do texto.

Rio cultural é a forma ou a estrutura da sociedade onde o texto foi produzido. Isso implica que precisamos saber, o mais próximo possível, quem escreveu, editou, idioma do texto, destinatário etc. Além de tudo isso, é necessário saber como funciona aquele mundo, não só de Israel, mas o seu redor: Antigo Oriente Próximo (AOP). Mas, como vamos entender o mundo de Israel ou o seu redor a parte do texto bíblico? Pela sua literatura.

O livro de Gn é um texto antigo, é um documento que é contextualizado para uma população que não é pessoa alguma fora daquela época. A Bíblia, de forma geral, não é escrita tendo como destinatário pessoas além daquela época. Ou seja, a Bíblia não é escrita para nós, para a igreja dos sécs. II ao XXI ou para estrangeiros fora das terras de Israel: ela tem uma data de escrita específica, tem um escritor original, um destinatário original e uma mensagem própria que foi entendida, perfeitamente, pelo escritor e pela sua audiência originais. Entender e compreender que Gn é um documento antigo e faz parte daquele mundo onde foi produzido é o primeiro passo para uma boa exegese.

O próximo passo para compreender o que o texto de Gn quer dizer dentro do seu contexto é entende-lo dentro do seu rio cultural. Muita coisa escrita (eu diria que tudo) não faz sentido para mim, cientista do ocidente e morador no séc. XXI. Só que eu é que preciso estudar e trabalhar para entender o texto dentro da cabeça do israelita do séc. XV a.C.. Isso é o que Walton chama de comunicação de alto contexto, ou seja, entender a mensagem dentro do rio cultural. Mas, não é só de entendimento enraizado no passado que se vive a igreja: é preciso fazer a hermenêutica bíblica, ou seja, a transposição transcendental do texto no espaço e no tempo. E isso se faz na comunicação de baixo contexto: entender o texto antigo e transpô-lo para quem é exterior, tanto no espaço quanto no tempo, àquela sociedade.

E onde entra a literatura em tudo disso? Uma sociedade está estruturada de tal forma que a sua produção cultural é expressa na literatura, naquilo que ela deixa escrito. Esses escritos podem ser de diversas formas: leis, cosmogonias, ciência, histórias, crônicas, poemas etc. Entender essa literatura rica nos dá todos os ingredientes de como é o pensamento da sociedade de forma geral. Agora, amarre essa ideia com Israel: ele estava imerso no mundo antigo, tinha o mesmo terreno em comum de pensamento de forma de agir. Entendendo a literatura do AOP, entendemos como Israel também pensava. Entendendo como Moisés & Cia pensava, entendemos a estrutura literária de Gn. Entendendo bem a estrutura literária e todo o contexto de Gn, conseguimos fazer uma boa exegese bíblica. Por fim, fazendo uma correta exegese bíblica, podemos entender a inspiração divina em Moisés por escrever aquele texto, Gênesis, que faz parte da Palavra de Deus. Indo nessa direção, Walton dá uma excelente conexão em 2 citações na pág. 17 do livro O mundo perdido de Adão e Eva:

Aqueles que encaram a Bíblia seriamente acreditam que Deus inspirou locuções (palavras, tanto faladas quanto escritas) que o comunicador utilizou para construir suas elocuções (que levam a um entendimento das intenções, afirmações e, por fim, significado) conjuntas (autor divino + humano), mas que as locuções fundamentais estão ligadas ao mundo do comunicador.

Inspiração se conecta a locuções (elas têm sua fonte em Deus); elocuções definem o caminho necessário ao significado que pode ser definido como caracterizado por autoridade.

Vou chover no molhado, mas observe que inspiração não é ditado ou psicografia. Inspiração significa inspirar, puxar para dentro. Depois de processado esse algo que entrou, sai a escrita do texto bíblico. E o processamento é feito pelo mundo onde o comunicador está inserido. Comparando com a biologia da respiração: você inspira o ar, colocando para dentro de si uma fonte externa; seus pulmões realizam trocas gasosas; depois você expira, colocando para fora o resultado do processamento do que foi inserido e o que você já tem. Comparando com o texto bíblico: Deus inspira o escritor, ele processa a inspiração com suas palavras e sua cultura onde está inseridoe devolve tudo para o mundo exterior em formato de escrita e palavras. Obviamente, as palavras que o escritor coloca são plenamente conhecidas por ele e por sua audiência original; se nós, ocidentais do séc. XXI, vamos entender, isso é um problema nosso e não do escritor ou do Autor que o inspirou.

Parece que estou sendo muito repetitivo, mas é intencional. A quantidade de confusão que há nessa parte de inspiração e inerrância bíblica, em nossas igrejas, ainda é muito grande, mesmo com milênios de discussão teológica. Resumindo: Deus inspira o escritor no seu mundo e na sua cultura a escrever a Sua Palavra, que é inerrante; psicografia e “ditado divino” não são convicções ou termos corretos bíblicos.

Agora, voltando ao nosso tempo. É claro que temos uma gigantesca dificuldade para entender a cabeça do israelita ao se ler o texto de Gn, principalmente nessa parte sobre a origem do homem. Afinal, eles estão no séc. XV a.C, no conhecido hoje Oriente Médio, há uma grande diferença cultural. Um exemplo mais simples para você, caro leitor, ter uma ideia do que estou falando: pegue a carta de Pêro Vaz de Caminha. É uma carta simples, tem umas 14 páginas (digitadas), escrito em português, datada em 1 de maio de 1500. Temos apenas 500 anos, todo mundo sabe ler português no Brasil e, mesmo o português de Portugal, é muito semelhante. Nesse link https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4185836 tem todas as páginas da carta. Tente ler apenas a primeira página, que está na foto abaixo:

Primeira página da carta de Pêro Vaz de Caminha.
Fonte: https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4185836

Numa primeira olhada, nem tenho capacidade de ler isso, que está escrito em português de Portugal, é um texto original (autógrafo) e tem apenas 521 anos de idade. E eu sei português, moro no mesmo país que foi construído por Portugal, mas não consigo ler essa carta com a mesma facilidade do que ler um jornal de hoje. Então, o pessoal da Biblioteca Nacional disponibilizou esse mesmo texto de Caminha em uma forma que sou capaz de ler (confira nesse link http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf).

Faça esse mesmo exercício com o texto de Gn, escrito lá no séc. XV a.C., no AOP, em hebraico arcaico (não é o hebraico moderno). Você já deve perceber a enorme dificuldade (que é uma lista sem fim de problemas) para se fazer algo tão simples assim. Toda essa divagação é apenas para te mostrar, caro leitor, que a leitura literal (ao pé da letra) do texto de Gênesis não é a correta. Pelo menos, no quesito de tradução de Gn, podemos confiar muito bem nas nossas versões em português, como as edições advindas de João Ferreira de Almeida, Nova Versão Internacional etc.

Só que, queremos mais. Não queremos apenas uma tradução do texto; só isso não é suficiente para entendermos se o homem veio do barro ou do macaco (não, o homem não veio do macaco e a biologia não diz isso). Para entendermos a criação do homem precisamos entender a cultura onde o texto de Gn foi escrito e, como disse acima, um bom caminho para se trilhar é entender a cultura do AOP através de sua literatura, ou seja, fazendo comparação da literatura do AOP com o texto bíblico. Chamando, novamente, Walton, na pág. 17 do mesmo livro O mundo perdido de Adão e Eva:

Estudos comparativos nos ajudam a entender mais plenamente a maneira que os autores bíblicos utilizaram para empregar gêneros, além da natureza de suas retóricas. Isso evita que nós confundamos esses elementos com algo que eles nunca foram. Longe de comprometer a autoridade da Escritura, tal exercício atribui autoridade àquilo que o comunicador estava de fato comunicando. Também necessitamos de estudos comparativos para reconhecermos aspectos do ambiente cognitivo do autor, externos a nós, e para lermos o texto à luz de seu mundo e de sua cosmovisão.

Acho que está bastante claro que a Bíblia não é livro de ciência e, no máximo, cita (sem ensinar) a ciência da época do escritor. Obviamente, a autoridade do texto não está nesse quesito de a ciência dele (escritor) está correta ou não, ou se é a mesma ciência que utilizamos hoje. Walton mesmo é explicito nisso na pág. 19 do mesmo livro citado anteriormente:

Em contrapartida, proponho que nossas afirmações doutrinárias sobre a Escritura (autoridade, inerrância, infalibilidade, etc) se vinculem à mensagem intencionada pelos comunicadores humanos (como concedida pelo comunicador divino). Isso não significa dizer que acreditamos em tudo o que eles acreditavam (eles acreditavam de fato que havia um céu sólido), mas que estamos comprometidos com o ato comunicativo.

Em um outro trecho da mesma pág. 19, Walton diz:

Então, por exemplo, não é surpresa que Israel acreditava em um céu sólido nem que Deus tenha acomodado sua comunicação a este modelo ao dialogar com Israel. Porém, uma vez que a mensagem do texto não é uma afirmação sobre a verdadeira forma da geografia cósmica, podemos rejeitar esses detalhes de forma segura, sem comprometermos a autoridade ou a inerrância da Escritura. Tal geografia cósmica está no grupo de crenças dos comunicadores que é empregado na estrutura de sua comunicação, não no conteúdo de sua mensagem.

Então, Israel acreditava em uma Terra plana? Acreditava no domo, geocentrismo, que o Sol e a Lua giravam ao redor da Terra? Muito provavelmente sim, e não há problema algum nisso: a Bíblia não ensina que a Terra é plana, não ensina geocentrismo e não ensina que o Sol e a Lua pararam na época de Josué. Entender o contexto dos escritores corta 90% dos nossos problemas exegéticos. Melhor: observe o que o Walton diz no final da pág. 20 e início da pág. 21 do mesmo livro que estou referenciando:

Todos os aspectos das operações regulares do mundo descritos na Bíblia refletem as perspectivas e ideias do mundo antigo – ideias que Israel, juntamente com todos os demais no mundo antigo, já acreditava. Embora o texto ofereça muita revelação sobre a natureza divina, seu caráter e sua obra, não há uma única incidência de nova informação sendo oferecida por Deus aos israelitas sobre as operações regulares do mundo (o que chamamos de ciência natural). O texto é inteiramente antigo, sendo comunicado nesse contexto.

Em resumo: para termos uma correta exegese do texto de Gn sobre a origem do homem é entrar dentro da cabeça do Moisés. E, para fazer isso, precisamos imergir na literatura do AOP, fazer exercícios de comparação literária entre esse material e o texto sagrado (que é inspirado e inerrante do Criador) e entender o terreno comum onde tudo está: isso não suplanta a autoridade bíblica, mas nos deixa muito mais responsáveis e reverentes perante a um texto tão sacro como esse dado por Deus a nós.

Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos.

Isaías 55:9

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

  • Para ter um entendimento melhor sobre teoria da evolução, um bom livro em português é Evolução, por Mark Ridley, 3a ed, editora Artmed;
  • O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Série de livros The lost world seriesThe lost world of Adam e Eve (acima tem a edição em português), The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debateThe lost world of Scripture: ancient literary culture and biblical authorityThe lost world of israelite conquest: covenant, retribution, and the fate of canaanitesThe lost world of the flood (acima tem a edição em português) e The lost world of the Torah: law as covenant and wisdom in acnient contexto. Todos esses livros dessa série podem ser vistos no site da editora InterVarsity Press https://www.ivpress.com/the-lost-world-series. Recomendo fortemente essa série, que é escrita por John Walton e vários outros colaboradores.
  • O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Como ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova. Um excelente livro, bastante simples e nada técnico;
  • Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por André Reinke, editora Thomas Nelson Brasil. Um bom livro que mostra muitos detalhes históricos e culturais dos povos do AOP;
  • Dissertação A “influência do mito babilônico da criação, Enuma Elish, em Gênesis 1,1 – 2,4a. É um interessante trabalho feito por Antonio Ivemar da Silva Pontes e que está disponível em http://tede2.unicap.br:8080/bitstream/tede/886/2/dissertacao_antonio_ivemar.pdf.
Manuscrito 4Q6 – 4Q Genf. É um fragmento de um texto de Gênesis descoberto na caverna 4 perto do Mar Morto.
Fonte: https://www.deadseascrolls.org.il/explore-the-archive/image/B-496534
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *