As origens do homem: introdução

E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.

Gênesis 1:27

Um dos temas, talvez, mais complicados e difíceis de se discutir em termos de diálogo entre ciência e fé cristã é a criação ou origem do homem (homem = mulher, crianças, idosos, humanidade, civilizações etc). Entender ou, em muitos casos, aceitar a cosmologia, evolução do universo, formação da Terra, formação da Lua (por detritos de impacto da Terra) e até a evolução biológica dos seres vivos, é muito mais fácil do que entender a origem do homem em termos evolutivo. E, até quando se compreende e “aceita” a evolução humana a partir de outros primatas e ancestralidade comum com outros animais, conectar essa parte científica com a narrativa bíblica se torna um problema gigantesco. E é justamente nessa última parte que quero focar nessa nova série As Origens do homem.

Essa nova série do CosmoTeo é um desdobramento da série As Origens. Mas, como ela ficará muito extensa, criei essa específica apenas para tratar do tema, com foco mais em literatura bíblica: de onde o homem veio? Só que, como a temática é muito abrangente, deixarei de fora da discussão as questões biológicas ou físicas. Claro que citarei, de forma breve, e explicarei o que for necessário. Mas, caso você queira entender melhor o que é teoria da evolução (que não é teoria de Darwin), seleção natural, genética etc sugiro sempre olhar a bibliografia que deixo no final e, principalmente, o livro Evolução, do Mark Ridley, 3ª edição. Este livro está em português e, até onde conheço, é o mais completo sobre o assunto em nosso idioma. Ou seja, tudo o que precisar para embasar algum conceito científico biológico, recorrerei a ele.

Apenas relembrando o que você, caro leitor do CosmoTeo, já está cansado de saber: teoria, em ciência, não é achismo: é o mais alto grau de conhecimento sobre determinado fenômeno, que engloba evidências, explicação dos fenômenos ao redor e leis, além de fazer previsões testáveis de hipóteses afim de descartar ou evidenciar. Então, quando falar sobre teoria da evolução, estou referenciando o mais alto grau de conhecimento científico, que tem evidências, hipóteses e previsões testáveis sobre a origem das espécies: teoria da evolução, assim como a teoria do Big Bang, não fala sobre a origem da vida (ou do universo, no caso do Big Bang).

Um outro ponto que preciso destacar nesses prolegômenos (detalhes introdutórios que você precisa saber antes de entrarmos no tema) é que há vários modelos para explicar a origem do homem, Adão e Eva etc conjugando narrativas bíblica e científica. Novamente, modelo é como se fosse uma teoria científica: é um conjunto argumentativo, embasado em estruturas sólidas, para explicar um determinado fenômeno. Exemplo: quando falei sobre a batalha lá do texto em Josué, o modelo que utilizei para explicar aquela narrativa foi de um eclipse solar parcial. O que fiz foi apresentar um conjunto argumentativo (modelo) que explicava o texto bíblico dentro da exegese (entender o texto dentro do seu rio cultural e com apoio da astronomia. Aqui, nessa série sobre As Origens do homem, farei algo semelhante: apresentarei modelos sobre a origem do homem, associando o que o texto bíblico, com a devida exegese bíblica feita, e o que diz as ciências biológicas. O primeiro modelo que trabalharei é o apresentado por John Walton no livro O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis.

John Walton, como você já deve conhecer por eu falar muito dele aqui, principalmente na série As Origens, é professor de Antigo Testamento (AT) no Wheaton College, nos EUA. É pesquisador em cultura e literatura bíblica e no Antigo Oriente Próximo (AOP). Ele tem uma série de livros já publicados sobre origens (universo, Terra, homem, Escrituras, Torá etc), além de diversos outros em pesquisas que ele mesmo faz nas regiões do atual Oriente Médio. Eu desconfio, dado o que já li sobre, que ele lê as tabuinhas de argila em escrita cuneiforme (é o primeiro registro de escrita da humanidade). Como ele é professor de seminário teológico, quase certeza que lê hebraico bíblico fluente, faz associações literárias diretamente entre o texto bíblico (no original) e as literaturas do AOP (Gilgamesh, Atrahasis etc). E, como ele mesmo se cita, ele não é um cientista natural, como um físico ou um biólogo. Ou seja, o foco de sua obra inteira é literatura bíblica, Palavra de Deus, coisa de crente firme na Rocha.

Além desse belíssimo livro do Walton, mais ao fim da série, tratarei sobre outros modelos de Adão e Eva que são apresentados, de forma resumida e muito didática, no livro Criação ou evolução: precisamos escolher?, do Denis Alexander. Alexander é um cientista biólogo, foi fundador e diretor do The Faraday Institute for Science and Religion: é um instituo de pesquisa interdisciplinar, dentro de Cambridge (uma das primeiras universidades fundadas do mundo), que faz pesquisa na interação entre ciência e fé. Esse livro do Alexander já é um pouco diferente: ele fala de muita biologia, de forma muito simples e didática, e trata de teologia bíblica; tudo isso no mesmo livro. E em algumas partes, Alexander apresenta outros modelos (lembre-se: modelo é um conjunto argumentativo embasado em estruturas com evidências etc) do que seria Adão e Eva, do texto bíblico, na nossa realidade: casal histórico, onde viviam etc.

Temos uma noção, praticamente intuitiva e advinda nos ensinamentos que recebemos em nossas igrejas durante anos, que a exegese bíblica é imutável: a Bíblia não muda, então nosso entendimento humano também é imutável. Só que isso não é tão certo assim, principalmente em termos sobre as origens. Um exemplo clássico, paralelo, é a nossa interpretação bíblica da Reforma até hoje: uma verdadeira porteira aberta de interpretações soteriológicas (doutrina da salvação), escatológicas (doutrina das últimas coisas, como interpretações sobre o livro de Apocalipse) e até hamartiológicas (doutrina sobre o pecado original). É claro que muitas dessas interpretações (algumas, reinterpretações) são quase ou, até mesmo, heréticas em essência. Já no caso da exegese sobre a origem do homem também mudou ao longo da história da igreja.

Alguns exemplos. Teófilo de Antioquia é, registrado, o primeiro pai da igreja a afirmar que os dias da criação são literais, ou seja, uma semana de 7 dias (o sábado também faz parte) de 24 h cada (vide em Teologia sistemática, do Franklin Ferreira e Alan Myatt mais detalhes). Orígenes, no séc. III, já faz uma alegoria completada e críticas da criação em dias literais de 24 h. Basílio de Cesaréia retoma a ideia de criação de dias literais com tipologia (uma espécie de simbolismo baseado em evento histórico). Ambrósio, outro personagem do séc. IV e da mesma época de Basílio, muda um pouco o entendimento: a criação se deu em apenas 1 dia de 24 h e, o que o texto bíblico narra, é a repetição (de cada dia) desse mesmo dia, mas com outro enfoque. O grande teólogo Agostinho, já no séc. V, entendia que a criação foi instantânea, tudo de uma vez: os outros dias relatados no texto são repetições com enfoques diferentes para que os mais fracos de entendimento pudessem entender um pouco melhor. Anselmo vai nessa mesma linha agostiniana de entendimento. Um dos maiores teólogos, Tomás de Aquino, segue uma linha semelhante a Agostinho, só que metafísica: as causas naturais não são demonstradas na Bíblia, apenas Deus é a causa de tudo. Se tudo foi criado em um dia apenas, os outros dias da criação na narrativa bíblica são ângulos de visão para melhor entendimento.

Veja o quanto mudou em apenas 13 séculos. Quando entramos na época da Reforma, Lutero defende 6 dias literais de 24 h. Calvino também, mas com enfoque de que é uma revelação de Deus acomodada ao homem em sua época. Talvez o maior entendimento moderno de literalidade (no sentido ao pé da letra) de Gn vem do bispo Ussher, do séc. XVII, quando escreveu o livro The Annals of the World em 1658: é uma cronologia completa da Terra baseando-se em dias literais (ao pé da letra) e chegando a cravar a fundação de tudo no dia 23 de outubro de 4.004 a.C., 09:00. Tenho esse livro em mãos, é possível fazer uma leitura até razoável (está em inglês mais antigo) e nele o bispo Ussher apresenta o método que fez a datação: compara eventos históricos externos com o texto bíblico até o ponto de ter referências diretas e, com isso, voltar até Gn 1:1. Séc. XIX / XX já temos mudanças sobre o entendimento sobre a criação: Charles Hodge, B. B. Warfield, Gresham Machen e Francis Schaefer advogam a exegese do texto não em literalidade de dias de 24 h, mas em eras como tempo indefinido e de forma progressiva; algo semelhante a algumas linhas do Criacionismo da Terra Antiga.

Aqui coloquei um pequeno quadro de evolução da interpretação bíblica apenas no enfoque dos dias da criação. O pensamento sobre a origem do homem também foi modificado ao longo do tempo principalmente depois dos trabalhos de 1859 de Darwin. Esses trabalhos são científicos, baseados em observações e experimentos que ele fez em viagens ao mundo pelo navio HMS Beagle. Claro que esse entendimento biológico sobre a evolução da vida mudou (ciência é mudança constante), principalmente com o entendimento sobre genes (e genética), bioquímica, atomística (descobrimos o átomo, como o conhecemos hoje, na década de 1910), mecânica quântica, herança genética e, claro, com a descoberta de inúmeros fósseis, desde animais mais antigos até chegar ao ser humano (o que chamamos, na biologia, de Homo sapiens, que é a nossa espécie atual).

Mesmo com toda essa mudança científica e teológica ao longo dos séculos, uma coisa que temos certeza: a Bíblia é a Palavra de Deus, inerrante e infalível. É claro que a inerrância e a infalibilidade dela não é em questões científicas; imagina o caos no entendimento de uma Terra plana em Gn 1 em contraste com o que vemos hoje, de uma Terra redonda. A inerrância e a infalibilidade está conectada ao que Deus quis revelar ao homem dentro do seu entendimento: se Moisés entendia que a Terra era plana e que Deus criou tudo em 7 dias de 24 h, tudo bem; Deus se revelou nesse entendimento. Se Deus se revelasse hoje, obviamente não escreveríamos um livro como Gn: escreveríamos um livro cheio de equações matemáticas e experimentos físicos, que é o nosso entendimento moderno.

Finalizando, precisamos ter em mente que o texto sagrado, como se estuda dentro de exegese, é completo em si. Ele não tem pretensão de ser científico (ciência é algo da nossa época) e muito menos de responder perguntas ou curiosidades que nós queremos. A Bíblia, como Palavra de Deus, é a revelação especial e escrita do Criados, demonstrando como Ele se relaciona com o ser humano de forma direta, pessoal. E, para tal, o texto bíblico mostra como isso acontece dentro do conhecimento do escritor e do destinatário originais, e não para o meu conhecimento, morador do Ocidente no séc. XXI. Além do mais, as nossas pressuposições não são retiradas ao lermos o texto sagrado, mas precisamos, ao máximo, entendê-lo como se fossemos os destinatários originais. Esses israelitas, no mundo antigo, entenderam perfeitamente o que o texto da origem do homem quis dizer; nós, atualmente, é que temos que quebrar cabeça para fazer uma correta exegese. Nem preciso dizer que, o que farei, não é uma teologização da ciência e nem uma cientifização da teologia; obviamente, uma leitura literal, ao pé da letra, do texto, também já descarto.

Te convido, caro leitor do CosmoTeo, a seguir em mais essa jornada sobre as origens da humanidade com um belíssimo passeio pelo mundo antigo e sendo guiado pelo texto bíblico. Jamais se esqueça de ler as sugestões de leitura que deixo no final: cada ponto é cuidadosamente pensado de forma complementar a esse assunto e sempre priorizo, se possível e eu conhecer, obras em português. Também, deixe seus comentários ou dúvidas, pois poderá me nortear em algum ponto de maior dificuldade em textos futuros.

E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.

Gênesis 2:7

Ficou em dúvida, quer perguntar algo ou fazer alguma crítica / sugestão? Deixe nos comentários abaixo e terei o prazer em te responder aqui ou em algum artigo específico.

Sugestão de leitura

  • Para ter um entendimento melhor sobre teoria da evolução, um bom livro em português é Evolução, por Mark Ridley, 3a ed, editora Artmed;
  • O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, por John Walton com participação de N. T. Wright, editora Ultimato em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Série de livros The lost world seriesThe lost world of Adam e Eve (acima tem a edição em português), The lost world of Genesis one: ancient cosmology and the origins debateThe lost world of Scripture: ancient literary culture and biblical authorityThe lost world of israelite conquest: covenant, retribution, and the fate of canaanitesThe lost world of the flood (acima tem a edição em português) e The lost world of the Torah: law as covenant and wisdom in acnient contexto. Todos esses livros dessa série podem ser vistos no site da editora InterVarsity Press https://www.ivpress.com/the-lost-world-series. Recomendo fortemente essa série, que é escrita por John Walton e vários outros colaboradores.
  • O melhor material, em português, no assunto entre ciência e fé cristã é o Dicionário de cristianismo e ciência, editora Thomas Nelson Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência;
  • Como ler Gênesis, por Tremper Longman III, editora Vida Nova. Um excelente livro, bastante simples e nada técnico;
  • Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, por André Reinke, editora Thomas Nelson Brasil. Um bom livro que mostra muitos detalhes históricos e culturais dos povos do AOP;
  • Dissertação A “influencia do mito babilônico da criação, Enuma Elish, em Gênesis 1,1 – 2,4a. É um interessante trabalho feito por Antonio Ivemar da Silva Pontes e que está disponível em http://tede2.unicap.br:8080/bitstream/tede/886/2/dissertacao_antonio_ivemar.pdf;
Obra de Michelangelo Criação de Adão. Essa pintura está na Capela Sistina, Vaticano, e é datada de 1510.
Fonte: https://www.wga.hu/frames-e.html?/html/m/michelan/3sistina/1genesis/6adam/06_3ce6.html
Dr. Alexandre Fernandes

Até a próxima!

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